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Viver em trânsito por territórios movediços: Uma cartografia das práticas em residência artístico­‑educativa no Sesc Pompeia em 2016-2017

Resumo

Esse ensaio tem o objetivo de construir uma cartografia das práticas que articulam, conectam e organizam as forças e discursos que tencionam e atravessam o campo (a ecologia) das ações artísticas e educativas em contextos não formais de exposições em equipamentos de interesse público (privados e estatais) em São Paulo. Nesse território, decalca­‑se a ecologia das práticas de artistas­‑educadores(xs) durante o programa “Residência Educativa” no Sesc Pompeia em 2016-2017 sob a coordenação de Cibele Camacci (Artes Visuais/Sesc Pompeia). A “Residência Educativa” é uma experiência dentro da rede Sesc, que articula educadores(xs) com pesquisas e ações autorais individuais e coletivas. Procuro elaborar uma conversa com Carvalho (2014, 2014b), Gallo (2015), Deleuze e Guattari (2011; 2012a; 2012b; 2012c; 2014a, 2014b) e Guattari (2012). O conceito movediço é uma tentativa de chave de leitura para o texto.

Palavras­‑chave

Deleuze e Guattari; Museus; Educação; Arte; Residência Artística.

Movediço adj.

1. que se movimenta muito
2. cujo movimento é fácil, quase natural
3. suscetível de mudar de posição: sem fixidez
3.1 cuja função exige facilidade para mudar de posição; móvel
4. cuja estrutura (peso, medida etc.) permite fácil transporte; portátil
5. que muda rapidamente de opinião, sentimentos, interesses; inconstante, volúvel
6. muito agitado; elétrico

Etimologia: part. movido sob a f. rad. moved- + iço
Sinônimos/Variantes: ver antonímia de permanente
Antônimos: estável, firme; ver tb. sinonímia de permanente.

0    Procedimentos para leitura do texto

Este artigo quer cartografar séries de ações realizadas através de pensamento, sistematização, pesquisa e realização com arte e educação em contextos de exposições em equipamentos de interesse público com gestão privada e estatal. A textura deste artigo encontra aproximações com a constituição das dunas com sua geomorfologia movediça, lançando mão do método cartográfico para observar as práticas em arte e educação em contextos de exposições. Opera­‑se o conceito de movediço como chave de leitura para perceber algumas experiências deste campo e decalcar a cartografia de um percurso realizado na Residência Educativa acionada no Sesc Pompeia em 2016-2017.

Movediço é transitório e fixo. Flutuante e permanente. É sair e entrar e permanecer enquanto se foge. É estar em um território amplamente conhecido, espetacularmente novo e desastrosamente território nenhum – terra devastada. É ambiguidade, multiplicidade sem um inteiro, em variação contínua (Deleuze; Guattari, 2012b, p.167; 2012c, p.57, 209; 2011, p.95; 2014b, p.60; 2012a, p.110-111). Estar em um território movediço cria características específicas sobre e com os corpos que o habitam (instituições, práticas, pessoas, funções etc.). Os territórios são dimensionais, agrupam­‑se em estratos e através de linhas discursivas e práticas. Criam­‑se agenciamentos entre instituições, pessoas, pensamentos, práticas.

Um agenciamento é precisamente esse crescimento das dimensões numa multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas (Deleuze; Guattari, 2014b, p.24).

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Deleuze e Guattari (2012b) pensam as molaridades, linhas duras e segmentadas, operando em conjugação e, ao mesmo tempo, linhas moleculares em conexão com fluxos de quanta. Campo possível para as linhas de fuga inventarem caminhos inusitados em variação contínua. Comentam essa relação: “As fugas e os movimentos moleculares não seriam nada se não repassassem pelas organizações molares e não remanejassem seus segmentos, suas distribuições binárias de sexos, de classes, de partidos” (Deleuze; Guattari, 2012b, p.104). E continuam:

Eis como se poderia distinguir a linha de segmentos e o fluxo de quanta. Um fluxo mutante implica sempre algo que tende a escapar aos códigos não sendo, pois, capturado, e a evadir­‑se dos códigos, quando capturado; e os quanta são precisamente signos ou graus de desterritorialização no fluxo descodificado. Ao contrário, a linha dura implica um sobrecodificação que substitui os códigos desgastados e os segmentos, são como que reterritorializações na linha sobrecodificante ou sobrecodificada. (Deleuze; Guattari, 2012b, p.108)

Linhas molares compõem algumas estruturas de trabalho e organização sólidas de equipamentos e instituições que ativam ações educativas tradicionalmente há décadas, alguns Museus Estatais organizados em torno do Ibram e Instituições de Cultura e Arte com fundos privados e públicos. Reflexo da historicidade dessa discussão é a criação da Política Nacional de Educação em Museus – PNEM (2017) e experimentos em cursos de formação profissional e pós­‑graduação em Educação em Museus. Uma variedade de estratégias para formalizar e estruturar um campo profissional e institucional dos setores educativos de diversas instituições.

Linhas moleculares compõem experimentações em fluxo de ativação, pensamento, sistematização de práticas desse campo movediço. São experimentações com equipes fixas e transitórias, em equipamentos de interesse público com gestão privada e estatal, são estratos que organizam certas formas de contrato, trabalho etc. Nas últimas duas décadas ressoam práticas de algo que se nomeou de educational turn (O’Neill; Wilson, s.d.) em múltiplas experimentações na América Latina, mais e menos conservadoras, com variação entre regimes estáveis e instáveis de contratação e trabalho.

E linhas de fuga por toda parte, instaurando novos regimes de organização, pensamento e ação em contextos fixos, transitórios, estatais, privados, públicos, que fazem emergir rachaduras e brechas para novas práticas dentro desse campo de atuação, dessa ecologia. Como as experiências de residência artística e educativas em contextos de educação não formal em espaços expositivos.

Há como perceber certa espécie de conexão nesses acontecimentos através de um pensamento em caosmose (Guattari, 2012) – liberando a aleatoriedade da culpa da psicanálise e cavalgando os desvios de um campo aberto e nunca somente UM campo – sempre uma multiplicidade! A esquizoanálise. A cartografia.

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Se do ponto A até o ponto B existe uma reta e esse é caminho que os conecta, é possível definir em uma escala de espaço, definir matematicamente sua distância, possibilidade de aproximação e afastamento.

Em caosmose são n percursos possíveis que se conectam a A e a B (e a n outros pontos). Pensamos n como uma variável da matemática, uma variação de qualquer e todas as respostas de um conjunto de valores. Em caosmose se investiga na neblina, ressonante com o que descreve Mia Couto sobre o procedimento da escrita,

Eis o que sucede no meu processo criativo: há uma sugestão que funciona como um grão de poeira que, suspenso no ar, irá convocar uma gota de chuva. Antes da obra, o que existe não é senão um nevoeiro. É crucial que não seja possível ver o caminho. É preciso, sim, adivinhar o destino. Porque a maior parte das vezes, na nossa vida cotidiana, vemos o que já foi visto, vemos o que sabemos ver e prever. (Couto, 2016)

Os percursos trafegáveis entre A e B são multiplicidades, variações e repetições, decalques e espaços que deslizam. Não apenas o múltiplo em oposição a um uno, mas uma multiplicidade sem unidade, não a conjugação de vários unos em um múltiplo. Talvez, transciplicidades – uma multiplicidade subtraída de qualquer unidade: n-1. N pode corresponder a todos e a qualquer um, exceto apenas a um, como escrevem Deleuze e Guattari (2014b, p.60) sobre as multiplicidades micro e macro,

Marco e micromultiplicidades. De um lado as multiplicidades extensivas, divisíveis e molares; unificáveis, totalizáveis, organizáveis, conscientes ou pré­‑conscientes – e de outro lado, as multiplicidades libidinais inconscientes, moleculares, intensivas, constituídas de partículas que não se dividem sem mudar de natureza, distâncias que não variam sem entrar outra multiplicidade, que não param de fazer­‑se e se desfazer, comunicando, passando umas nas outras no interior de um limiar ou além e aquém.

Em estado de caosmose e em um campo movediço este texto está organizado em cinco movimentos que se articulam com as seis definições­‑significações endereçadas ao vocábulo movediço pelo Dicionário Houaiss (2016). Cada movimento procura articular conceitualmente a análise proposta. Cada parte do texto é um platô que compõe essa análise. Cada platô é como uma camada, uma interface que se pode observar, cartografar e analisar. São:

  1. que se movimenta muito |o estar educador(x) como movimento de invenção de si em coletivo e em público
  2. cujo movimento é fácil, quase natural | residência educativa Sesc Pompeia 2016-2017
  3. suscetível de mudar de posição: sem fixidez | cuja função exige facilidade para mudar de posição; móvel | dentro e fora – heterotopias institucionais
  4. cuja estrutura (peso, medida etc.) permite fácil transporte; portátil | autoria – tecnologias nômades e institucionais
  5. que muda rapidamente de opinião, sentimentos, interesses; inconstante, volúvel | muito agitado, elétrico |destemer – desafios para organização em rede
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1    que se movimenta muito | o estar educador(x) como movimento de invenção de si em coletivo e em público

Cada educador(x) carrega consigo as qualidades específicas e decalques dos percursos que viveu, dos seus campos de experiência. Características grosseiras, errantes, sutis, doces e amargas, habilidades, manejos de técnicas, leituras, fluência de línguas, poemas, alguns desenhos, alguns esquemas, alguns projetos escritos, apresentações, uma variedade de saberes que se carrega na algibeira de instituição em instituição, de exposição para outra, de curadoria a outra, de grupo a outro, de formação a outra.

Como provocar e promover ações nos espaços expositivos e culturais de interesse público que fomentem uma constituição de si como potência de invenção? Produzir espaços de trabalho e existência que suportem estar em criação de possibilidades desconhecidas de aprendizagem? Talvez tencionar desta forma o assujeitamento nos processos de constituição de um sujeito educado, adestrado, castrado, diminuído, doente, psicanalítico que as instituições insistem em consolidar. Carvalho (2014a) questiona como criar síncopes, descontinuidades na lógica do sujeito (seu saber e seu poder)

Pensar como, em vez de o sujeito ser objetivado a partir de forças postas para a sua constituição, para a formação de sua subjetividade, ele poderia, ao contrário, tomar o seu próprio ser como transformação constituída a partir de si mesmo, sob o horizonte de outras ligações de forças (Carvalho, 2014a, p.112).

As possibilidades de invenção de si em uma estratégia de mediação cultural em um espaço público atravessam um convite para o(x) educador(x), a artista e o público: convida­‑se a inventar e recomeçar o novo. A maneira como se vê, o modo que se permanece em um espaço, o que se faz em público e o que não se faz, as coisas que tememos falar e as que desejamos falar e aquelas que conseguimos falar, os silêncios, os gritos etc.

Pensar a curadoria e a realização das visitas, oficinas, conversas públicas e toda a variedade de programas públicos que podem ser inventados nesses contextos como procedimentos de criação – como aqueles que tateiam nevoeiros antes de se consolidar, atravessam incertezas para organizar roteiros e criam dispositivos certeiros para se perder, como escreveu Mia Couto. Procedimentos (singulares e coletivos) artísticos e autorais de invenção, como comenta Carvalho: “A criação é um constante macular no sujeito constituído para desconstituí­‑lo e novamente abrir outra constituição, não de reposição, mas de efetivação, cuja potência é elevada ao infinito; abertura plena para novas experiências: sujeito­‑educador ontogênese vinda­‑a-ser” (Carvalho, 2014a, p.115).

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Em ressonância com o pensamento de Foucault sobre a constituição de subjetividades, “uma ética de si, a possibilidade de ações pedagógicas como subjetivação, constituição de si mesmo” (Gallo, 2015, p.435). Diferente da constituição de indivíduos, que “em termos disciplinares, os indivíduos são preparados para se ajustar às funções sociais excludentes, mas que os inclui no rol dessas mesmas categorias excludentes”(Carvalho, 2014b, p.196). A identidade é fruto do poder disciplinar que com as casernas, escolas, famílias, hospitais, prisões, fábricas, transformou cada um em um procedimento de individuação.

Como não se reconhecer na função educador(x) como identidade institucional e disciplinarizada (pela pedagogia, sociologia, filosofia etc.) e lançar a si no nevoeiro artístico­‑criador para recomeçar um novo? Um percurso inimaginado. Educação em nevoeiro. Muitos sendo cada um(x) uma multidão.

2    cujo movimento é fácil, quase natural | residência educativa – Sesc Pompeia 2016-2017

A arquitetura social da Cidadela da Liberdade – Fábrica da Cultura – Centro de lazer e esporte – Sesc Pompeia (1982) de Lina Bo Bardi propõe um convívio horizontal entre os diversos acontecimentos e programas públicos: teatros, brincadeiras de criança, namoros, jogos de cartas, descanso, almoços, mesas de conversa etc. O grande galpão reformado destinado à área de convivência possuiu uma arquitetura que multiplica espaços de encontro e de troca. Uma antiga fábrica de geladeiras, depois de tonéis de ferro, depois ocupada pela comunidade do entorno como espaço de convivência, festa, esporte, lazer etc. e transformada por Lina Bo Bardi. Um espaço para exploração de múltiplos auditivos, vocais, táteis ou visuais conectando uma diversidade de pessoas transraciais, transgeracionais e transclasse para criarem juntas um espaço de convivência, cultura, esportes etc.

Durante a primeira edição da Residência Educativa (2016) fomos contratados diretamente pela programação de artes visuais, como prestadores de serviço (por Micro Empresa Individual – MEI), mediante duas modalidades: educadores residentes e educadores de apoio. Depois os contratos foram todos assinados como educadores(xs) residentes, sem distinção. Durante a residência criamos espaços de grande liberdade para pensar, criar, interagir e experimentar as vontades e desejos em relação ao trabalho a ser realizado. Um possível laboratório sem censuras de experimentações políticas, pedagógicas e artísticas.

Foi preciso redescobrir o significado na organização diária de trabalho do que é “estar no espaço”, “estar em visita” e “estar em planejamento”. É urgente a invenção de novas estratégias de permanência e a criação em espaços expositivos que engaje experiências corporais, estéticas, éticas e artísticas. Abolir os fantasmas do que éramos e seguir adiante.

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O trabalho do educador­‑artista foi se consolidando ao longo das exposições, com as conversações entre programadores, artistas, curadores, expógrafos, arquitetos, coletivos, estudantes etc. Passamos a compor uma percepção do trabalho do(x) artista­‑educador(x) como criador(x) de interfaces e camadas de fruição singulares, novas, analíticas das obras que estão em exposição – compondo com a curadoria. O artista solitário vive na hermética ideia da obra de arte, e o artista solidário ao educador socializa a obra pelos caminhos tortos e disparatados da cultura e linguagem social. Uma função­‑educador(x) não é apenas uma obrigação humanitária e estatal da instituição para o público, não se restringe a ser um(x) facilitador(x) no entendimento da hermenêutica da obra. A função­‑educadora caminha pela solidariedade entre artista, pensamento, processos criativos, experimentações individuais, textos, oficinas, visitas e públicos.

Durante a residência educativa realizei uma ação pública em série chamada Dançar a morte de tudo (2016) para a exposição O globo da morte de tudo (2016), de Nuno Ramos e Eduardo Climachauska.

Os objetos todos da obra O Globo da Morte de Tudo estavam dispostos em prateleiras e estantes organizadas de maneira cartesiana e linear. As formas seguem a lógica da reta, da previsão, do conhecido. Tudo que estava nas estantes “tem nome”", faz parte da cultura, foi produzido por nossos meios de produção com fim de extração de mais­‑valia e lucro. Dentro da ordem, um caos. Dentro das estantes (e conectados a elas) dois globos formando uma imagem do infinito na matemática (o oito deitado). O infinito é o incalculável, imponderável, imprevisível, inestimável.

Dançar na antropologia da festa de Bataille (1993, 2004) é analisado como uma experiência que leva o corpo socialmente produzido pelo trabalho, pelo dogma, pela ordem, pela profissão, pelo gênero, pela idade, pela conduta governamental – à transgressão.

A festa (popular, religiosa, erótica etc.) tem importância na sociologia e na antropologia. Aí circulam símbolos e significações culturais que servem análises estruturais das sociedades. Ao passo que é o momento em que a sociedade derrapa nos trilhos do que lhe foi ensinado. Torcidas organizadas, festas de formatura, festas populares de rua, carnaval, raves, futebol de final de semana, o pagode de esquina etc.

Convidei o público a experimentar uma incursão inconsciente sobre o próprio movimento a partir de algumas indicações: a) andar para frente e andar para trás; b) cada vez que o olhar mudar de ponto, mudar o movimento; c) realizar essa ação todos ao mesmo tempo por vinte minutos; d) não parar e observar e pensar, e sim, fazer até cansar; e) depois, escrever um texto.

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Percebemos que esse procedimento abria o corpo para possibilidades de ação e movimento e criação que não estavam disponíveis na normalidade. Fizemos algumas dessas pela Fábrica da Pompeia. Desviar para todos os lados, não ter começo, nem fim, não inibir ideias. Criamos um lugar seguro para experimentar o que as nossas inconsciências poderiam fazer emergir.

3    suscetível de mudar de posição: sem fixidez | cuja função exige facilidade para mudar de posição; móvel | dentro e fora – heterotopias institucionais

Carvalho (2014a) afirma em sua análise uma paisagem em que o(x) educador(x), em sua função­‑educador, pode inventar o seu lugar para realizar uma prática. Esse dispositivo de invenção conecta e organiza as posições sociais e funções institucionais já constituídas por escolas, museus, institutos etc., ao passo que essa possibilidade de conectar diferentes fontes de forma molecular pode inaugurar possibilidades de fuga e escape. Comenta: “A função­‑educador pode ser pensada como um tipo singular de posição de um sujeito no interior de uma sociedade, relacionando­‑se direta e indiretamente com determinados dispositivos, táticas e estratégias de poder­‑saber, que fazem circular um conjunto de verdades” (Carvalho, 2014a, p.80).

Gallo (2015) pensa o povoamento dos territórios das instituições para além da sombra da vigilância – além do vigiar e punir. Faz esforços em colocar a possibilidade das heterotopias no ambiente institucional. O recomeço espaço­‑temporal do novo. Espaço e tempo heterotópicos. Escavar espaços para educadores(xs) desenvolverem seus laboratórios de pesquisa pode fomentar bolsões espaço­‑temporais de investigação, que podem fomentar novos procedimentos, dispositivos e desdobramentos. Gallo comenta essa relação espacial com as heterotopias: “Foucault começa por colocar a questão do espaço e os modos pelos quais nós os vivemos. Faz uma distinção entre o espaço do ‘dentro’ e o espaço do ‘fora’; o primeiro é o espaço em que vivemos, o outro é o espaço que não vivemos” (Gallo, 2015, p.439).

As utopias são espaços outros, mas da ordem do irreal. São posicionamentos sem lugar real (Foucault, 2001, p.414). Já as heterotopias acontecem em lugares reais, precisam estar aí para existir, são espaços outros que se constituem no agora. São bolsões de fora que se criam dentro do dentro. Um alisamento de um território estriado. Comentam os autores sobre liso e estriado em relação à música.

Para voltar à oposição simples, o estriado é o que entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz sucederem­‑se formar distintas, organiza as linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais. O liso é a variação contínua, é o desenvolvimento contínuo da forma, é a fusão da harmonia e da melodia em favor de um desprendimento de valores propriamente rítmicos, o puro traçado de uma diagonal através da vertical e horizontal (Deleuze; Guattari, 2012a, p.197).

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Um efeito próximo ao que Deleuze chamou de gagueira em relação à linguagem e que produz: “É o que acontece quando a gagueira já não incide sobre palavras preexistentes, mas ela própria introduz as palavras que ela afeta; estas já não existem separadas da gagueira que as seleciona e as liga por conta própria [...] Uma linguagem afetiva, intensiva, e não mais uma afecção daquele que fala” (Deleuze, 2011, p.138).

Uma espécie de uso menor da linguagem, de uso menor da prática educacional, da oportunidade do encontro. Também comentado em relação a Kafka por Deleuze e Guattari (2014a): “Servir­‑se do polilinguismo em sua própria língua, fazer desta um uso menor ou intensivo, opor o caráter oprimido dessa língua a seu caráter opressivo, achar os pontos de não cultura e de subdesenvolvimento, as zonas de terceiro mundo linguísticas por onde uma língua escapa, um animal se enxerta, um agenciamento se instala” (Deleuze; Guattari, 2014a, p.53).

Fazer um uso menor da profissão, escapando das métricas de altos e baixos cargos sociais – sejamos os(xs) nômades! Os(xs) ferreiros(xs) de Deleuze e Guattari que confiavam os segredos bélicos dos grandes impérios aos povos nômades que povoavam fora das fronteiras da cidade. Escapar das formalizações como estratégia de permitir sempre a fluidez e o fluxo para recomeçar o novo modo de contrato, de trabalho, de estrutura, de sociabilidade, de estudo etc. Um criar territórios sólidos para em seguida os ver cobertos pelas dunas e seguir caminhando para outro novo território, qualquer.

4    cuja estrutura (peso, medida etc.) permite fácil transporte; portátil | autoria – tecnologias nômades e institucionais

Entre as modalidades de ocupação e agenciamento territorial Guattari e Deleuze vão dar contorno a diversos conceitos e sistematizações. Experimentam notar o que é o funcionamento de um povoamento nômade e um civilizado: as suas disputas, a agonística entre si, a interdependência, as correspondências, as invenções e cooptações, os extermínios e as fugas etc. O nômade como um alisamento das territorialidades, um movente, que permite fácil transporte, como uma máquina de guerra inventando constantes escapes. O Estado (ou Aparelho de Estado) como uma metrificação do espaço, repartição das regiões, hierarquização das funções, governamentalidade das vidas e das populações. Comentam os autores: “é a diferença entre um espaço liso (vetorial, projetivo e topológico) e um espaço estriado (métrico): num caso, ‘ocupa­‑se o espaço sem medi­‑lo’, no outro, ‘mede­‑se o espaço a fim de ocupá­‑lo’” (Deleuze; Guattari, 2012c, p.26).

Nesse amalgama analítico observam as tecnologias sociais desses povoamentos, especificamente as armas e as ferramentas: ambas tecnologias, a primeira vetorial e projetiva (a arma) e a segunda métrica e funcional (a ferramenta). Ambas apropriadas, reinventadas, adaptadas, aprimoradas, concebidas por povoamentos nômades e por Estados civilizados. Ambas manipuladas, acionadas, perpetradas por máquinas de guerra (nômades) e Aparelhos de Estado (maquínicos).

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As armas e seu manejo parecem reportar­‑se a um modelo de ações livres, da mesma maneira que as ferramentas parecem remeter a um modelo de trabalho. O deslocamento linear, de um ponto a outro, constitui o movimento relativo da ferramenta, mas a ocupação turbilhonar de um espaço constitui o movimento absoluto da arma. Como se a arma fosse movente, automovente, ao passo que a ferramenta é movida (Deleuze; Guattari, 2012c, p.81).

Em um programa público acionado pela Rede de Educadores de Museus de São Paulo (REM­‑SP) junto ao Centro de Pesquisa de Formação do Sesc/SP (CPF­‑Sesc, s.d.) a artista, educadora, curadora e pesquisadora Valquíria Prates propôs uma conversa pública um pouco semelhante a uma palestra. Ela já estudou tecnologias assistivas em sua dissertação de mestrado (Prates, 2008) no Brasil, Bolívia e México. No entanto, naquela noite ela trouxe uma nova camada para o conceito de tecnologia em contextos de educação em espaços expositivos e museus. A proposição de sua palestra foi levantar indagações sobre qual seria a especificidade dessa tecnologia que um(x) educador(x) cria. O que constitui essa prática, o que atravessa essa discursividade, o que compõe essa ecologia de ações? Como podem operar os dispositivos de apropriação e repulsão das instituições dessas tecnologias? O que interessa à curadoria acionar em programas públicos com artistas e educadores(xs), como oficinas, palestras, minicursos, ateliês abertos etc.?

As qualidades específicas das ações de um(x) educador(x) podem se associar em uma análise às produções de fugas e deslocamentos em espaços de educação, como comentou Carvalho (2014a, 2014b, 2015). Um movimento que cada educador(x) operar sobre si, sobre sua poética, sua investigação, versa e produz um conhecimento específico sobre como receber pessoas em um espaço de fruição de artes como espaços expositivos e museus, e ainda, sobre como propor experiências de aprendizagem coletivas em espaços de interesse público que permitam questionar, repensar, explodir os modos de sociabilidade e os modos de estarmos em comunidade etc.

A residência educativa no Sesc Pompeia apostou que os educadores(xs) poderiam vazar as suas poéticas para criar interfaces com obras, espaços públicos, arquitetura, povoamentos do espaço, pessoas, colaboradores(xs) do Sesc etc. As interfaces poderiam assumir diferentes suportes e formatos: intervenções, oficinas, visitas temáticas etc. Incentivou­‑se que cada artista­‑educador(x) residente a assumir a autoria de cada ação pública que propusesse. Engajar suas pesquisas individuais como disparadores coletivos de ação pública.

Uma forma de publicar que estar educador(x) pode ser: tornar­‑se híbrido entre pesquisa, ação, ensino, curadoria e política com o objetivo de criar acontecimentos em formatos de programas públicos (aulas, oficinas, ateliês, visitas, revistas, jornais, vídeos etc.) que podem aproximar, formar e compartilhar processos de criação artística, social, política, manual com o público – uma multidão e multiplicidade de pessoas transgeracional, transclasse, transgênero e transracial.

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Ao passo que a instituição também cumpre seu compromisso social de criar mecanismos de acessibilidade para todos(xs), criando programas comunitários de cultura, arte, alimentação, saúde, lazer e esportes. Compromisso que garante a manutenção dos incentivos fiscais e verbas recebidas pelo poder público­‑estatal e pela rede de empresários dos comércios e serviços. Como diz seu “quem somos nós” on­‑line:

Ao longo dos anos, o Sesc inovou ao introduzir novos modelos de ação cultural e sublinhou, na década de 1980, a educação como pressuposto para a transformação social. A concretização desse propósito se deu por uma intensa atuação no campo da cultura e suas diferentes manifestações, destinadas a todos os públicos, em diversas faixas etárias e estratos sociais. [...] O Sesc desenvolve, assim, uma ação de educação informal e permanente com intuito de valorizar as pessoas ao estimular a autonomia pessoal, a interação e o contato com expressões e modos diversos de pensar, agir e sentir. (Sesc­‑SP, s.d.)

Na análise que Guattari e Deleuze apresentam em relação às duas tecnologias sociais (a arma e a ferramenta) há uma figura importante na confecção desses objetos: o(x) ferreiro(x). A feitoria das armas e das ferramentas são artes do(x) ferreiro(x) – sua teknè. A especificidade da tecnologia do ferreiro é um híbrido que faz transbordar as materialidades e inaugurar novas ligas, novas formas, objetos ainda desconhecidos. Comentam os autores: “na metalurgia, as operações não param de situar­‑se de um lado e de outro dos limiares, de sorte que uma materialidade energética transborda a matéria preparada, e uma deformação ou transformação qualitativa transborda a forma [...] O metal não é nem uma coisa nem um organismo, mas um corpo sem órgãos” (Deleuze; Guattari, 2012c, p.105).

Ao analisar as oficinas da antiguidade e medievais é notável que os mestres de ofício de ferreiros não viviam dentro dos cercamentos e muros dos feudos, palácios e reinados. Por operarem com temperaturas muito intensas e minérios brutos, os ferreiros posicionavam­‑se extramuros, nos avizinhamentos dos povoados, nas proximidades dos comércios periféricos, no tangenciamento das estradas em que circulavam mercadores, viajantes e nômades. A transa dos objetos, manuseios, invenções entre nômades (máquina de guerra) e civilização (Aparelhos de Estado) utiliza o ferreiro como intercessor, como atravessador, como ponto de permeabilidade.

O ferreiro não é nômade entre os nômades e sedentário entre os sedentários, ou seminômade entre os nômades, semissedentário entre os sedentários. Sua relação com os outros decorre de sua itinerância interna, de sua essência vaga, e não o inverso. É na sua especificidade, é por ser itinerante, é por inventar um espaço esburacado, que ele se comunica necessariamente com sedentários e nômades (Deleuze; Guattari, 2012c, p.105).

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No entanto o ferreiro é esse sem nome – não expatriado e não nômade, fixo e transitório, povoamento sem­‑terra. Os ferreiros são povoamentos do subsolo, ao invés de escalar montanhas, perfuram­‑nas; ao invés de ocuparem um território, esburacam e cavam­‑no; transformam­‑no em outro, um novo, uma arma, uma ferramenta, uma tecnologia. O ferreiro possui apenas sua tecnologia e a terra toda lhe pertence, sem que nada possa lhe pertencer.

No campo de atuação os(xs) educadores(xs) migram de uma formação a outra, de uma exposição a outra, de um ateliê a outro, de uma instituição a outra, de uma curadoria a outra, de uma equipe a outra, de uma coordenação pedagógica a outra, de uma posição funcional a outra (supervisão, coordenação, produção etc.), ao passo que são requisitados, procurados, desejados, necessitados por essas instituições por dominarem uma tecnologia específica de realização, pesquisa e criação de programas públicos em contextos de exposições e museus. É próprio do(x) educador(x) manipular e organizar sua tecnologia e sua atuação para se tornar esse traficante, atravessador, intercessor, ferreiro, comunicador de uma tecnologia específica entre instituições, museus, organizações populares e empresariais, artistas, ativistas, livros, públicos, pessoas, obras, espaços de convivência, experiências, sensações etc.

Educadores(xs)­‑ferreiros(xs). Uma multidão que manipula e exerce o ofício e a teknè de produzir armas e ferramentas:

Armas – programas públicos que vazam fronteiras institucionais e se associam a organizações sociais, movimentos de minorias. Quando propõe ações que turbilhonam o espaço de atuação.

Ferramentas – programas públicos que se associam às instituições para acolher um leque de públicos institucionalizados como escolas, universidades, agendamentos especializados, oficinas, ateliês, melhor idade etc.

5//6    que muda rapidamente de opinião, sentimentos, interesses; inconstante, volúvel | muito agitado, elétrico | destemer – desafios para organização em rede

São diversas (e escassas) as possibilidades de contratação de um educador­‑artista ou educador não formal para atuar em projetos no terceiro setor, em instituições culturais, educacionais, esportivas e museus. Contratos por CLT para cargos estáveis dentro de instituições públicas e privadas que gerem os equipamentos; contratos por CLT com prazo determinado de começo e finalização, normalmente, operando por 4 a 6 meses; contratos como prestadores de serviço, contratos como Micro Empreendedor Individual (MEI), cargos públicos com estabilidade, free­‑lancer, oficinas livres etc.

As legislações trabalhistas atravessam essa categoria de maneira pouco específica, não reconhecendo como uma profissão específica, que precisa ser compreendida dentro de um teto de horas semanal, piso salarial, sindicalização etc. Defender a consolidação da identidade do educador não formal e do artista­‑educador é uma tática possível para consolidação de mercado de trabalho, segurança em empregos, parâmetros de atuação, variabilidade dos produtos e remunerações (salários diferenciais por trabalhos diferentes no mesmo campo) etc. Há importância em ser percebido pelos poderes estatais, públicos, privados como uma categoria e uma classe de trabalhadores(xs).

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E desse modo corremos muitos riscos. A identidade é fruto do poder e das estratégias de governamentalidade. Nomear, catalogar, distribuir, agenciar, domesticar, adestrar, ensinar etc. São ressonâncias do Aparelho de Estado, das intencionalidades de governar melhor um certo fluxo social, nicho de atuação que está difuso.

Talvez, ao especificar legalmente o que é a função educador(x) não formal e artista­‑educador(x) tenhamos de abandonar a qualidade de ferreiro, que não é nem nômade nem sedentário. Talvez tenhamos de restringir e catalogar o que é e o que não é educação, educativos, programas públicos etc.

Ao passo que quando assumimos a função­‑ferreiro, a função sem território definido, nós expandimos as possibilidades de invenção de novos lugares para se habitar, atuar, trabalhar, pesquisar, criar etc. Transitamos entre subsolos, planícies, céus, galáxias, mares, casas, museus, ocupações, obras, vernissages, pagodes, funks, busões etc. Temos a possibilidade de constantemente refazer e recomeçar a nossa prática como se fosse sempre uma novidade. Sempre um devir. Ocupar um território sem o medir e deixá­‑lo quando for preciso e desejado.

A dança do ferreiro opera essa dupla articulação entre estar itinerante e submetido. O que pode trazer diversos desafios, como não ter estabilidade salarial, não poder acessar planos de saúde privados, não poder acessar um empréstimo de longo prazo para financiar uma casa própria. Variação constante de remunerações e passagem expressa por instituições – sem nem o tempo de dizer bye­‑bye.

Com as recentes transformações no cenário político, social e econômico, com a repetição de velhas histórias latino­‑americanas sobre coronéis poderosos, agricultores ferozes, militares excêntricos, empresários norte­‑americanos, investidores árabes, o pré­‑sal, as reformas trabalhista e previdenciária, teremos de ter cautela para entender como estar educador(x) entre a cruz e a navalha. Precisaremos ter clareza e solidariedade para ampliar as possibilidades de fala para mais educadoras e educadores periféricos, negros e trans. É preciso repensar os modos de articulação em classe para além dos sindicalismos, para além da rebelião fogo de palha, para além das redes sociais, para além das fronteiras do voto.

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Referências on­‑line

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Capa

Rede de Redes – diálogos e perspectivas das redes de educadores de museus no Brasil

Sumário Ficha Técnica