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Materiais educativos com sentidos, portanto sem privilégios

Resumo

O presente texto propõe uma reflexão baseada em experiências de visitantes com deficiência visual em espaços culturais. Um desses encontros ocorreu durante a 32ª Bienal de Artes de São Paulo, onde pudemos realizar uma visita para um grupo de pessoas com surdocegueira e com deficiência múltipla. Contamos com o apoio da equipe do Educativo da Bienal, assim como do Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego e ao Múltiplo Deficiente. Após uma breve descrição das atividades, apresentaremos materiais educativos e as reflexões a eles relacionadas, tendo como objetivo pensar sobre a acessibilidade. Parece­‑nos indispensável a participação de pessoas adultas, com deficiência visual e com formação na área como consultoras, para evitarmos meras simplificações, infantilizações, ou mesmo adaptações sem qualquer valor tátil na construção de materiais acessíveis.

Palavras­‑chave

Acessibilidade; Direitos; Cegueira; Baixa visão; Surdocegueira.

Introdução

O presente trabalho tem como ponto de partida algumas experiências vivenciadas em espaços culturais e educacionais. Parte de reflexões derivadas de um diálogo entre textos de Arendt (2004, 2010, 2011) e ações práticas. Tendo como mote o atendimento ao público com deficiência visual, iniciaremos com reflexões teóricas para, então, apresentar alguns materiais voltados principalmente para esse público, buscando fomentar o hábito de pensar a acessibilidade como um requisito para toda e qualquer ação educativa. O direito ao acesso a toda e qualquer informação precisa ser incorporado por todos os educadores em espaços culturais e em escolas. Afinal de contas, como dizia Anísio Teixeira, a educação não é um privilégio.

Devemos dar crédito às instituições culturais paulistanas que vêm, em sua grande maioria, apresentando mudanças significativas, no sentido de buscar garantir a acessibilidade a todos os públicos. Muitas ações educativas vêm ampliando os sentidos: a obra de arte não é mais apenas aquilo que observamos e fruímos a distância, com um cordão que impede nossa aproximação. Não está restrita a pessoas que dominam determinados “códigos de conduta”, nem tem limites etários.

O acesso à cultura é um direito que vem se consolidando com ações das próprias instituições, como o dia do “passe livre”, adotado por vários museus na cidade de São Paulo. Além disso, seja por meio da confecção de materiais educativos acessíveis para pessoas com deficiência, seja por meio das possibilidades criadas pelos próprios artistas com obras interativas que exploram o tato, o olfato e a propriocepção, que utilizam movimentos e vibrações, todas essas transformações vêm consolidando os espaços expositivos em espaços públicos universais. E isto é algo atual: pensar sobre as possibilidades como um ato coletivo, público e, portanto, político.

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É com o exemplo de um momento que conjugou uma série de atos coletivos que iniciamos esta apresentação.

A experiência que envolveu as educadoras que apresentam este trabalho ocorreu durante a 32ª Bienal de Artes de São Paulo. Na ocasião, foi possível realizar uma visita para um grupo de pessoas com surdocegueira e com deficiência múltipla. Essa experiência foi muito significativa, porque evidenciou a importância da assunção da responsabilidade pela acessibilidade como uma ação que pode e deve ser assumida por todas as pessoas. Isto é, não se trata de uma ação assistencialista de um grupo especializado capaz de oferecer o atendimento, mas da garantia do direito de todas as pessoas, por todas as pessoas, e tendo como referência importante o desenho universal.

As discussões e as atividades durante a formação dos educadores propiciaram esse pensar como um ato coletivo, porque esteve alicerçado nas trocas. A produção de materiais educativos exige um olhar crítico, para que se superem os limites de um mundo vidente e ouvinte e para que se superem os limites do próprio olhar sobre o mundo. Alguns aspectos relacionados a essa produção serão pontuados na segunda parte deste trabalho, onde apresentaremos exemplos de materiais já produzidos.

Vale lembrar, ainda, que mesmo envolvendo profissionais que atuam com acessibilidade há décadas, a elaboração de materiais e roteiros acessíveis vem permeada de uma série de especificidades que exigem o diálogo direto com as pessoas com deficiência. Esse aspecto será retomado no decorrer do texto.

Por ora, importa registrarmos alguns questionamentos que nortearam nossas discussões para a elaboração desta apresentação: em que medida a intermediação de um material educativo pode intensificar ou impedir a experiência de fruição de uma obra de arte? E qual o papel do educador­‑mediador e do guia­‑intérprete?

Pela acessibilidade como uma atitude durável

Naturalmente, a reificação que ocorre quando se escreve algo, quando se pinta uma imagem ou se modela uma figura ou se compõe uma melodia, tem a ver com o pensamento que a precede; mas o que realmente transforma o pensamento em realidade e fabrica as coisas do pensamento é a mesma manufatura [workmanship] que, com a ajuda do instrumento primordial que são as mãos humanas, constrói as coisas duráveis do artifício humano. (Arendt, 2010, p.211)

A mediação em espaços culturais é sempre uma ação potencialmente educativa, não por passar conteúdos, mas por ser uma atividade que fomenta o pensar como um ato coletivo. Coletivo, porque o educador é um “representante” desse mundo pelo qual, como afirma Arendt (2011, p.239), “deve assumir a responsabilidade”.

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E assumir a responsabilidade implica a criação de condições para que o novo se projete, se realize e permaneça. Nesse sentido, se as experiências vividas em museus têm se mostrado um lugar para o florescimento de um mundo novo, alicerçado no acolhimento e respeito de todas as pessoas, é também onde predominam ação e pensamento não reificados, para o que Arendt (2010, p.117) nos alerta: “Sem a lembrança e sem a reificação de que a lembrança necessita para sua realização [...] as atividades vivas da ação, do discurso e do pensamento perderiam sua realidade ao fim de cada processo e desapareceriam como se nunca houvessem existido”.

Portanto, escrever, reificar é necessário. Registremos, pois.

Quando falamos em um mundo novo, referimo­‑nos à existência de condições objetivas que possibilitam a realização de uma visita de um grupo de pessoas com surdocegueira e deficiência múltipla à exposição da 32ª Bienal de Artes de São Paulo. Condições objetivas porque acolhimento não é apenas um sentimento – apesar de o aspecto atitudinal ter grande relevância –, mas diz respeito à garantia de direitos como mobilidade e acessibilidade física/comunicacional. Ao oferecer um serviço de mobilidade urbana adequado para pessoas com surdocegueira, o poder público está assumindo sua parcela da responsabilidade coletiva. Nesse sentido, é importante registrar que o transporte foi feito pelo Atende, por meio de agendamento prévio, conforme orientações divulgadas em site. Um serviço público que precisa ser fortalecido e ampliado. Para que isso ocorra, deve, entre outras ações, ser visto, lembrado e valorizado.

As políticas públicas que atendem todas as pessoas, independentemente de suas características físicas e de seu credo, devem ser um assunto de interesse comum, e o que interessa é algo que inter­‑est, “que se situa entre as pessoas e que, portanto, é capaz de relacioná­‑las e mantê­‑las juntas” (Arendt, 2010, p.228). Mas o que nos interessa não é apenas o que está nas políticas públicas, e sim, tudo o que está no domínio público, “enquanto mundo comum, [que] nos reúne na companhia uns dos outros e, contudo, evita que caiamos uns sobre os outros” (Arendt, 2010, p.64).

Para Arendt (2010, p.221), o que nos humaniza é a ação e o discurso entre os homens – e quando utiliza essa palavra, ela se refere a todas as pessoas. Escrever sobre essa parcela do mundo que nos parece digna, a partir de uma experiência real, é uma tentativa de reificar essa lembrança, propiciando a valorização de uma forma de fruição do mundo pautada em uma postura acolhedora. Uma forma de fruir o mundo extremamente humana, porque abarca, efetivamente, a pluralidade na coletividade. E o que mais caracteriza essa postura acolhedora?

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A presença de profissionais, no caso, uma equipe de bombeiros que realizam de forma adequada, profissional e segura, o deslocamento de pessoas que usam cadeira de rodas sobre as rampas do edifício­‑obra de Niemeyer. Dessa forma, a equipe gestora da Bienal está assumindo sua parcela da responsabilidade coletiva porque está, também, assegurando o direito de todos estarem nesse lugar. E isso precisa ser visto e ouvido, ou tocado e sentido, mas de qualquer forma, comunicado, pois a maioria das pessoas acredita que essa equipe atua apenas em caso de incêndio.

A organização da visita foi orientada e intermediada para o grupo de pessoas com surdocegueira pelo Grupo Brasil de Apoio ao Surdocego e ao Múltiplo Deficiente, e também mostra como essa organização está assumindo sua parcela da responsabilidade coletiva ao buscar a criação de oportunidades de forma ativa, não apenas delegando ou exigindo ações.

O Educativo da Bienal, por sua vez, disponibilizou, durante a visita, cinco mediadores para atender o grupo de pessoas com surdocegueira, e contamos com o apoio de guias­‑intérpretes voluntários e estagiários do Grupo Brasil, e/ou de familiares – isso é de grande relevância porque o Atende oferece o serviço para pessoas com surdocegueira, mas exige a presença de um acompanhante.

Foi dessa forma que o roteiro da visita foi elaborado de forma conjunta, com a orientação de pessoas do Educativo da Bienal, com a avaliação de pessoas com surdocegueira do Grupo Brasil, e com a ciência de que contaríamos com o apoio da equipe de bombeiros que atuavam na exposição, assim como de guias­‑intérpretes. Responsabilidade compartilhada, interesse comum.

Podemos nos arriscar a afirmar, portanto, que quando se criam condições efetivas para que uma educadora utilize suas mãos, seu tempo e seu conhecimento para fabricar as “coisas do pensamento” de um contexto novo, um mundo novo, que aposta em algo chamado materiais acessíveis, a assunção da responsabilidade coletiva passa a ser contaminada pela “estabilidade” da obra de arte, de que nos fala Arendt (2010, p.209). É a possibilidade de permanência de uma ação e de um discurso nesse mundo de coisas feitas pelos homens, e que tem mais sentido quando usufruído.

Ações possíveis objetivadas coletivamente. Pessoas acolhendo pessoas. Uma soma de diversas experiências anteriores que propiciou o preparo da visita, tendo o cuidado do exercício coletivo de autoquestionamento sobre como a produção de materiais educativos adaptados exige um olhar crítico para que se superem os limites de um mundo vidente e ouvinte.

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Foi nesse sentido que a educadora Marina trabalhou na confecção de materiais táteis, como o logotipo e os textos em braile, tendo uma vasta experiência acumulada em anos de trabalho como educadora em espaços culturais. Sua produção trouxe outra série de aspectos que, apesar da complexidade, serão, a título de “provocação”, apenas brevemente pontuados mais adiante neste texto. São eles: as referências bi e tridimensionais nas adaptações de recursos; a estética tátil; o desenho acessível, a relevância da planta tátil de localização espacial e a adaptação das cores em alto contraste.

Importa ressaltarmos o fato de que essa produção está em constante e cada vez mais intenso diálogo com a necessidade de se assegurar a acessibilidade – um direito garantido por leis em nosso país –, e traz recursos que buscam combater de forma crítica e objetiva meras simplificações ou infantilizações. Para tanto, como já apontado anteriormente, outra característica importante do trabalho realizado pelas educadoras na produção de material acessível diz respeito ao diálogo constante com pessoas adultas com deficiências sensoriais – visual e auditiva – que atuam como consultoras. Isto é, as adaptações não são realizadas com base em “achismos”. Pelo contrário, derivam de muitos diálogos e discussões com pessoas com deficiência, respeitando o “nada sobre nós, sem nós”.

E essa construção conjunta foi permeada por inúmeras discussões e questionamentos: tocar a obra de arte é sinônimo de acessibilidade? Obras interativas, por si só, garantem a fruição da obra? Como pensar um equilíbrio entre a preservação da obra de arte ou do objeto museológico, e a garantia do direito à fruição para pessoas com cegueira, baixa visão ou com surdocegueira?

Partindo da adesão dos próprios artistas, pudemos explorar algumas dessas questões. Neste texto, elencamos duas obras visitadas para uma rápida descrição. A primeira obra visitada foi o Restauro, de Jorge Menna Barreto. Nela, além da obra em si, utilizamos o espaço para uma discussão introdutória. Sobre uma das mesas, foram organizadas maquetes da Fundação Bienal com legendas em braile, para apresentarmos o local e o conceito da exposição. Os visitantes puderam explorar a prancha tátil com um dos logotipos da 32ª Bienal de Artes de São Paulo.

Apresentar o espaço. Falar sobre a exposição. Contextualizar. Trazer informações e pistas sobre esse lugar. Tudo o que pessoas videntes experienciam, cada um a um modo, mas pela visão, precisa ser transmitido para as pessoas cegas, com baixa visão e com surdocegueira. Em algumas situações, pode não ser relevante. Porém, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, onde a própria arquitetura do prédio tem um significado artístico potente, esse cuidado é necessário.

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A obra de Jorge Menna Barreto envolvia a ingestão de alimentos, e foi escolhida não apenas porque a degustação em si poderia ser interessante. Não se tratava somente de texturas, sabores e odores. A obra convidava a outras reflexões. Trazia questões relacionadas ao consumo consciente e às formas de produção de alimentos, ao comer como um ato político. Assim, a mediação de educadores da obra, com a tradução feita pelos guias­‑intérpretes, seguida da degustação, evidenciou a importância da presença dos educadores­‑mediadores: a mediação também pode ser uma forma de assegurar a acessibilidade.

Uma das outras obras exploradas foi a En forma de nosotros [Na forma de nós mesmos], de Rita Ponce de León. Apresentamos a proposta da artista: “tocar e explorar com o corpo todo”, sentindo o cheiro do material, caminhando sobre a obra e dentro dela, ouvindo as gravações (quando a pessoa tinha resíduo auditivo), explorando visualmente (quando a pessoa tinha resíduo visual), e deixamos cada pessoa com surdocegueira com um guia­‑intérprete para explorar o espaço, como se fazia nas visitas de outros grupos comuns. Tempo. Fruição.

A diversidade de sentidos que podiam ser explorados na obra propiciou uma troca interessante, evidenciada durante uma breve roda de conversa na saída da instalação. Houve, ainda, a possibilidade de exploração de um material complementar: os moldes utilizados na montagem da instalação. Isso porque a educadora Marina, já durante a montagem da exposição, entrou em contato com os artistas para pensar sobre elementos que poderiam compor roteiros de mediação para pessoas com deficiência.

Tratava­‑se de uma obra particularmente potente, no que diz respeito ao uso de outros sentidos além da visão e da audição. O comentário de um dos participantes com surdocegueira, já adulto, com um sorriso largo no rosto, ao sair dessa instalação, deixa um convite para que todos os educadores pensem sobre a assunção da responsabilidade coletiva de acolher sempre todas as pessoas: “Foi a primeira vez que eu vi uma obra, de verdade. Adorei”.

Essa breve descrição da experiência na Bienal de Artes foi trazida para, a partir dela, assinalarmos pontos que merecem um aprofundamento futuro e dizem respeito aos aspectos listados anteriormente, os quais se complementam e entrelaçam em vários sentidos.

As referências bi e tridimensionais nas adaptações de recursos podem parecer algo fácil. No entanto, muitas informações visuais nos chegam sem que pensemos sobre elas. Muitas informações visuais nos chegam por meio de um “filtro” cultural, uma forma de estar no mundo muito específica: de pessoas videntes.

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Se McLuhan (1972, p.210) afirma que “A tipografia sendo a primeira mecanização de um ofício manual constitui ela própria perfeito exemplo não de novo conhecimento, mas de aplicação prática de conhecimento já existente”, no caso das adaptações de recursos trata­‑se de uma desmecanização e desconstrução de antigos conhecimentos para, mediante trabalho manual, traduzir o que a visão capta para o universo tátil. Aplicação prática e um tipo de conhecimento completamente novo sendo construídos simultaneamente.

Pode parecer simples, mas as considerações de Kastrup (2015, p.70) sobre o redirecionamento da atenção do sentido da visão para o tato mostram a complexidade dessa ação ao chamar nossa atenção para a necessidade de pensarmos quem é esse público que está visitando a exposição. É uma pessoa cega? É uma pessoa de baixa visão? E podemos complementar: é uma pessoa com surdocegueira? Kastrup nos mostra como é importante ter em mente que há outros fatores a considerar, como: quando essa pessoa perdeu a visão/audição? Ou é uma pessoa com cegueira congênita? Será necessário “ensinar” outros “procedimentos exploratórios”, caso essa pessoa não tenha no tato todas suas referências culturais?

Nesse sentido, é necessário cuidado quando se propõe a elaboração de materiais que mantêm a bidimensionalidade, pois mais do que traduzir para o universo tátil, implica a permanência de referências culturais visuais – e isso pode ter grande validade para pessoas cegas que perderam a visão há pouco tempo, ou quando já adultas. Não basta criar maquetes de quadros. Um quadro é um quadro e existe neste mundo, dessa forma.

E é possível levar não apenas a “bidimensionalidade” para o universo tátil, mas também as cores. Estas podem e devem ser mantidas nas adaptações, e podem ser mantidas em termos visuais e potencializadas ao serem transportadas para sensações táteis.

Figuras 1 – Parte do portfólio da educadora Marina Baffini, com exemplos de materiais adaptados, apresentados na Sessão Temática “Materiais Educativos”, durante o II Encontro da Rede de Educadores de Museus (REM­‑SP), em 2017. Fotos: Caroline Rosa Lima.
Figuras 2 – Parte do portfólio da educadora Marina Baffini, com exemplos de materiais adaptados, apresentados na Sessão Temática “Materiais Educativos”, durante o II Encontro da Rede de Educadores de Museus (REM­‑SP), em 2017. Fotos: Caroline Rosa Lima.
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Poderíamos pensar: a adaptação de quadros para pessoas cegas e com surdocegueira poderia se restringir a relevos e texturas representacionais. Sim. Porém, a deficiência visual não se restringe à cegueira total. Muitas pessoas com baixa visão mantêm na visão uma importante fonte de informações. Elas só precisam, por exemplo, poder se aproximar mais, com iluminação adequada, para enxergar o quadro e explorá­‑lo de acordo com o seu tempo. Para essas pessoas, a utilização das cores em contraste, no caso de materiais adaptados, é essencial. No caso de uma pessoa que nunca enxergou cores, saber quais cores compõem um brasão, por exemplo, é uma informação cultural relevante. Qual o significado do vermelho, do verde ou do vinho? E a representação da cor dos metais: dourado ou prateado. E quando um material é explorado tatilmente, as cores podem influenciar na temperatura dos objetos, e isso pode ser percebido por algumas pessoas cegas.

Então, manter relevos, texturas e cores junto a uma audiodescrição assegura a inclusão?

Almeida, Carijó e Kastrup (2010) apresentam em seu artigo várias questões de grande pertinência. Partindo de uma reflexão sobre a diferença entre o acesso ao espaço e o acesso às obras, esses autores apresentam rapidamente o que é o acesso “estético” para, então, analisar as diferentes estratégias de adaptação de pinturas e desenhos, como o uso do alto­‑relevo, das esculturas – por meio da disponibilização de algumas obras para o toque –, e as gravações em áudio com descrições e explicações.

Dessa análise, vale resgatarmos algumas problematizações mais diretamente relacionadas à nossa apresentação, como o uso do alto­‑relevo: o tato não é capaz de, por si só, interpretar uma obra em alto­‑relevo, pois a simples transposição pode levar a uma série de ambiguidades perceptivas (Almeida; Carijó; Kastrup, 2010, p.90). Nesse sentido, entre várias outras discussões apresentadas, o “alto­‑relevo não é uma versão tátil da obra, mas ‘outra’ versão visual” (Almeida; Carijó; Kastrup, 2010, p.92).

A análise crítica desses autores aponta para a necessidade de compreendermos que:

o tato, por sua própria complexidade, oferece aos artistas inúmeras possibilidades e direções de criação [...] Cabe inventar novas maneiras de produzir sentido estético tanto através da forma quanto da textura, do peso e das propriedades materiais em geral. Só assim será possível, finalmente, abandonar os padrões estéticos puramente visuais que impregnam as artes plásticas, permitindo­‑nos criar e recriar obras de arte de uma maneira mais condizente com o modo de perceber das pessoas cegas. O respeito pelo universo cognitivo das pessoas cegas não implica, como às vezes se pensa, uma restrição do campo estético, mas sua ampliação. (Almeida; Carijó; Kastrup, 2010, p.92)

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Nesse sentido, a estética tátil, o desenho acessível, o acesso às artes para pessoas com deficiência visual e com surdocegueira exige de nós a libertação de uma forma de percepção visual. Implica um exercício de exploração tátil. Vale repetir: forma, textura, peso. E ainda: cores, temperaturas, odores, movimentos, sons, vibrações. Aprender a fruir pelos outros sentidos é, como afirmam os autores, ampliar o campo estético de todas as pessoas.

No artigo citado, a discussão supera a ideia da adaptação a que nos referimos. Porém, permite um olhar crítico sobre esse universo de materiais acessíveis e sobre uma forma de estar no mundo que deixa de estar centrado nas informações visuais. É o caso da disponibilização de plantas táteis de localização espacial.

Como já apresentado, no início da visita à 32ª Bienal de Artes de São Paulo foram oferecidas plantas táteis para os visitantes. Uma informação visual transformada em informação tátil. Ainda que não seja realizada uma visita em todos os pisos da exposição, é um direito de todas as pessoas terem acesso a essas informações básicas. Entretanto, no caso das formas de Niemeyer, não basta oferecer as plantas. Durante o percurso, chamamos a atenção para as curvas, os ecos, o fluxo dos sons, com a exploração tátil das colunas – sua magnitude, o frio e a rigidez do concreto sendo transformados pelas curvas e contornos.

Considerações finais

Seria impossível registrar tantas questões, ou mesmo apresentar as discussões que surgiram durante a apresentação oral no II Encontro da Rede de Educadores de Museus de São Paulo. Portanto, como uma provocação, e não um encerramento, voltamos às questões: tocar a obra de arte é sinônimo de acessibilidade? Obras interativas, por si só, garantem a fruição da obra? Como pensar um equilíbrio entre a preservação da obra de arte ou do objeto museológico e a garantia do direito à fruição para pessoas com cegueira, baixa visão ou com surdocegueira?

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Sem termos o objetivo de dar uma resposta, deixamos a ressalva de que acreditamos ser necessário continuar a pensar, discutir, propor reflexões que considerem, por exemplo, o equilíbrio entre a preservação da obra de arte ou do objeto museológico e a garantia do direito à fruição para pessoas com cegueira, baixa visão e com surdocegueira. É preciso partir da adesão dos próprios artistas a comportamentos e atitudes inclusivos. Mais do que isso, é preciso trocar informações com as pessoas com deficiência visual e com surdocegueira, sejam elas cegas ou que tenham baixa visão. Esse é um requisito para a elaboração de materiais adequados. Isso porque poder tocar uma escultura não implica necessariamente ter acesso. Como Almeida, Carijó e Kastrup (2010, p.93-96) exemplificaram, a exploração tátil e livre de uma escultura pode levar a interpretações falsas e “incorretas”. Mas isso só amplia as questões: será que se trata de decifrar o que os olhos veem? Uma obra bela, para os que enxergam, não pode ser feia, para quem a explora pelo tato? Não teríamos de pensar em termos do que é agradável ao tato, e não frio como o mármore? Mas, assim como os quadros, este mundo está cheio de estátuas de mármore, metais e outros materiais que ocupam objetivamente espaços culturais. Portanto, com a presença de mediadores, ter acesso pelo tato e pela audiodescrição pode significar um enxergar sem ver. Ter o direito de conhecer e de saber garantidos. Ser e estar, com as diferenças e especificidades respeitadas. E caso as curvas do cabelo em mármore frio não agradem e pareçam imprecisas, que as pessoas com deficiência visual possam afirmar: não gosto. Não acho bonito. Não me agrada.

Incluir não é trazer o outro para o mundo vidente e ouvinte. Não é obrigar as pessoas cegas e com surdocegueira a terem os mesmos gostos e referências, para eles serem “iguais” a nós. Como educadores, sim, devemos apresentar o mundo como ele é (Arendt, 2011, p.239). E como educadores, sim, devemos deixar os nossos próprios limites e deixar que os novos empreendam “alguma coisa nova e imprevista para nós, preparando­‑as [...] com antecedência para a tarefa de renovar um mundo comum” (Arendt, 2011, p.247).

Referências

ALMEIDA, Maria Clara de; CARIJÓ, Filipe H.; KASTRUP, Virginia. Por uma estética tátil: sobre a adaptação de obras de artes plásticas para deficientes visuais. Fractal – Revista de Psicologia, Rio de Janeiro, v.22, n.1, p.85-100, abr. 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1984-02922010000100007&lng=en&nrm=iso; último acesso em: 2 jan. 2018.

ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. [1959-1975]. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

. A condição humana. [1958]. Trad. Roberto Raposo. 11.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

. Entre o passado e o futuro. [1954]. Trad. Mauro W. Barbosa. 7.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.

KASTRUP, Virginia. O tátil e o háptico na experiência estética: considerações sobre arte e cegueira. Revista Trágica: estudos de filosofia da imanência, v.8, n.3, p.69-85, 3º quadrim. 2015. Disponível em: http://tragica.org/artigos/v8n3/kastrup.pdf; último acesso em: 2 jan. 2018.

MCLUHAN, Marshall. A galáxia de Gutenberg: a formação do homem tipográfico. São Paulo: Cia. Ed. Nacional; Ed. USP, 1972.

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Rede de Redes – diálogos e perspectivas das redes de educadores de museus no Brasil

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