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Perspectivas da educação nos museus de artes: tradução e leitura

Resumo

Este trabalho tem como tema a educação em museus de arte e busca discutir os fundamentos da educação praticada pelos museus em uma perspectiva crítica. O objetivo é, mediante pesquisa bibliográfica, compreender esse espaço de educação não formal e seus referenciais teóricos e analisar o educador com um papel político. O texto aponta que o museu de artes é essencialmente educativo e, nele, os indivíduos são espectadores a priori no mundo, mas também se situam no contexto de não apenas estar no mundo, mas com ele. A reflexão busca abrir possibilidades no engajamento dos educadores e repensar as relações de ensino­‑aprendizagem, quando deslocadas para essa realidade. Na busca por novos modelos críticos, precisamos incluir o museu de artes como espaço de produção de conhecimento.

Palavras­‑chave

Formação cultural; Educação museal; Mediação cultural; Tradução; Museologia e pedagogia.

Introdução

Inicialmente, a escola é o principal lugar que vem à mente quando se pensa em situar as relações pedagógicas. Mas esse espaço, hoje, se dissolve em muitos outros, impondo cada vez mais uma ênfase no olhar de análise pedagógica nas diversas expressões.

Um desses locais é o museu de artes. Os museus se organizam em diversos setores que buscam organizar suas atividades em áreas como conservação, curadoria, comunicação ou educação. Neste trabalho, vamos nos debruçar sobre o papel dos núcleos educativos sob uma perspectiva teórica e investigar a partir desta pergunta: como construir um projeto educativo que dê conta da diversidade?

Para isso, seguiremos esta estrutura de discussão: (1) apresentar as características das práticas educativas que acontecem no museu de artes e na escola e suas aproximações; (2) apresentar um pequeno histórico do pensamento museológico e a construção da identidade dos museus em relação com os públicos; (3) situar a importância dos museus de arte para a discussão da ideologia hegemônica; (4) apresentar a função do educador do museu de artes como o de tradutor que articula saberes dos visitantes com a leitura dos objetos expostos.

A escrita deste trabalho se dá num contexto favorável às discussões sobre a área. Houve recentemente a publicação da Portaria 422 do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), que dispõe sobre a Política Nacional de Educação Museal (PNEM) (Brasil, 2017). Esse é um importante passo para que as políticas públicas da cultura acompanhem a demanda que a sociedade civil vem construindo há algum tempo.

Pretendemos contribuir para a organização de um material de referências teóricas com o objetivo de alimentar a organização de novos núcleos educativos e de propor a complementação em núcleos já estabelecidos. A reflexão que vamos realizar agora pretende apresentar e cruzar referências, tendo como horizonte uma consolidação do papel dos educadores de museus e da área da educação museal.

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A educação e os museus

O museu é tradicionalmente considerado como um importante centro educativo, desde o início do século XX. Ele se relaciona com o campo da educação quando posicionamos a Escola como espaço de educação formal e o Museu como educação não formal (Grinspum, 2000, p.33). Neste contexto, a prática da educação que acontece fora da escola é considerado como um campo próprio, chamado de educação não formal.

Esse tipo de educação parte de um processo sociopolítico, cultural e pedagógico de formação para a cidadania e designa “um conjunto de práticas socioculturais de aprendizagem e produção de saberes, que envolve organizações/instituições, atividades, meios e formas variadas” (Gohn, 2015, p.16). A autora cita os museus como um dos espaços sociopolíticos possíveis para essa prática, incluindo a aprendizagem da noção de tempo e de espaços históricos.

Complementando, Denise Grinspum aponta que o museu tem características próprias dentro dessa categoria chamada de “não formal”, e diferencia o museu dos demais espaços não formais por considerar os processos de ensino­‑aprendizagem com base na interação entre o visitante e o objeto exposto em determinado ambiente (Grinspum, 2000, p.33).

Mesmo em categorias distintas, os espaços da Escola e do Museu têm realizado uma interação entre suas práticas educativas. Nessa interação, “a grande maioria do público visitante dos museus brasileiros constitui­‑se de estudantes da Escola Básica (infantil, fundamental e média)” (Grinspum, 2000, p.36). Esses visitantes também são considerados como visitantes agendados (em contraposição às características dos visitantes espontâneos), e seu número foi crescendo historicamente a partir das megaexposições que fizeram as instituições perceberem a importância das visitas escolares (Barbosa, 2009, p.17).

Nesse contexto, Ana Mae Barbosa menciona a criação de diversos setores educativos nos museus brasileiros a partir da década de 1990. Os museus, por estarem ligados à prática da leitura de obras de arte, passaram a ser procurados cada vez mais por professores e alunos. Essa perspectiva da leitura de obras está vinculada também à Abordagem Triangular, desenvolvida pela autora, e que estava sendo difundida e também integrada aos Parâmetros Curriculares Nacionais determinados pelo MEC em 1996 (Barbosa, 2009, p.17).

Necessita­‑se esclarecer que o museu não é entendido aqui como ilustração dos conteúdos escolares, mas como espaço que se utiliza de outras plataformas e mediações comunicacionais diversas para o conhecimento da própria cultura ou de outras culturas. Se a educação nos museus servir, ao contrário, para reforçar as dificuldades da escola ou reduzir a capacidade de interpretação, isso pode gerar consequências que reafirmam outras práticas educativas consideradas opressoras, como por exemplo a prática da educação bancária (Barbosa, 2009, p.15).

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Em compensação, entre os benefícios da educação escolar para os museus está o acesso à cultura e o desenvolvimento individual e coletivo. Nessa relação o museu torna­‑se então “um espaço cultural significativo, pois propicia o contato multissensorial com objetos de suas coleções ou exposições, possibilitando a expressão e o desenvolvimento da capacidade crítica” (Grinspum, 2000, p.42).

Entre as diversas possibilidades que o museu utiliza para interagir com o público existem os instrumentos de mediação: textos de parede, catálogos, folhetos, audiotours, CD­‑ROMs (Grinspum, 2000, p.45) etc. Essa relação entre o que o museu estabelece como forma de comunicação com o público e como ele se organiza também influi na perspectiva da relação entre os campos da museologia e da educação.

A museologia e os públicos

A museologia apresentou, ao longo do tempo, diversas maneiras de se entender a identidade e a função de um museu, gerando questões específicas sobre a presença do público a partir dos interesses do pensamento museológico norteador da instituição.

Existem várias formas de se enxergar o Museu. Elas abrangem: (1) a ideia de um espaço reverencial; (2) propostas entre produtores e consumidores que se estabelecem por uma via de uma mão ou (3) uma via de duas mãos; e até (4) uma estrutura descentralizada que tem seus limites transpassados (Puig, 2009, p.56).

O primeiro dos casos é uma concepção que faz o museu girar em espiral em direção a si mesmo. É o museu que parte do imaginário coletivo pensado exclusivamente como museu de belas­‑artes, o qual ignora outros tipos de museus construídos e constituídos na mesma época – a modernidade –, como os museus de ciências naturais, de artes decorativas ou de antropologia (Puig, 2009, p.57).

Algumas das características que margeiam essa noção envolvem defender a essência da obra de arte como um mito, a do artista como gênio, ou da arte como uma arte europeia, representando uma maneira positivista de ordenar o saber. O museu dessa concepção é um tipo de catedral, ou templo, relacionado a uma alta cultura aristocrática: o museu se baseia em uma museologia afirmativa e autoritária, posicionando­‑se em uma cultura de especialistas (Puig, 2009, p.59).

Nesse caso, o papel dos educadores é repetir as mensagens dos curadores, que são os que detêm o domínio da interpretação. Quanto a isso, o silêncio dos visitantes não deixa de ser, também, o silêncio dos educadores. Quando há projetos nos programas educativos, eles adotam esquemas e uma organização do conhecimento que correspondem a estruturas que vêm da conservação, como identificação, descrição, explicação e demonstração. O objetivo é o de reforçar as vozes autoritárias dos curadores (Puig, 2009, p.59).

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Essa característica se mantém no período contemporâneo de forma bastante concreta, considerando certa dificuldade vinda das próprias instituições da área. Como aponta Ana Mae Barbosa, muitos curadores, críticos, historiadores e artistas resistem a enxergar o espaço do museu como uma instituição educacional, às vezes rebaixando a perspectiva que criam para os educadores, tornando­‑os atores de segunda categoria (Barbosa, 2009, p.14).

No segundo dos casos considerados para pensar os tipos de museus, encontramos um olhar difusor de consumidores. Ao posicionarmos o pensamento museológico, colocamos a relação com o público no campo do entretenimento e o visitante é consumidor de um produto cultural.

Nesse tipo de museu, é convencional pensar que “aprender” é sinônimo de sair de uma exposição com uma nova informação, adquirida. Isso é consequência de uma expectativa de relação de clientela em alguns espaços (Puig, 2009, p.60), em que a sensação de satisfação é o objetivo do público (Barreto, 2012, p.130).

Nesse contexto da cultura de massa, o museu é ao mesmo tempo espaço de contemplação, centro comercial e de lazer, além de espaço de instrução e vigilância. Há ênfase, nesse contexto, também sobre o mercado de arte e as megaexposições. Os programas educativos procuram gerar ampliação de novos públicos, quantitativamente, promovendo o museu em diálogo com setores como o marketing (Puig, 2009, p.61). A essência da relação com o público nessa posição é articulada com os contextos de aquisição de capital cultural e a democratização da cultura.

Com isso se relaciona o terceiro dos casos citados por Carla Padró Puig, em que a abordagem da museologia coloca o museu como um espaço de apropriação, quando a pessoa que está a serviço é quem tem a última palavra. Nesse contexto, constrói­‑se um tipo de visão caleidoscópica dos agentes que criam estruturas não oficiais nem definitivas. Aqui existe um museu “consciente de seus dilemas, de suas descontinuidades e de seus marcos de atuação, com a necessidade de revisar a museologia como prática cultural” (Puig, 2009, p.64).

Nesse aspecto, o museu se relaciona com o contexto da construção social do conhecimento refutando a autoridade dos modos tradicionais positivistas, porque passou­‑se a entender o conhecimento a partir da noção de “narrativa”. Se o conhecimento é uma narrativa construída, é possível entender os objetos nos museus por seus múltiplos significados (Roberts, 2015, p.1).

Entendendo que as expressões e as leituras das obras são relevantes, o educador poderá então incentivar a expressão individual dos estudantes (e também dos chamados visitantes espontâneos), por exemplo, no sentido de que as opiniões sejam autônomas. E assim encontram­‑se noções de compartilhamento entre a narrativa institucional e a do visitante, por intermédio dos educadores. Os educadores, nessa perspectiva, representam os interesses e necessidades de uma grande variedade de público, todos com formações, motivações e estruturas culturais distintas (Roberts, 2015, p.2).

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Por fim, como último modelo apresentado por Carla Padró Puig, temos o museu que reflete sobre sua própria prática museológica considerando as exposições como construtoras de identidades múltiplas, construídas de formas compartilhadas. Esse olhar se une a uma museologia “preocupada com a crítica da representação de outras vozes, a qual ressitua as funções expositiva, comunicativa e interpretativa e entende os profissionais como aprendizes” (Puig, 2009, p.67).

Quando consideramos que no momento contemporâneo há uma posição intencional de “amadorismo”, essa visão apresenta uma característica teórica e política que recusa a autoridade dos especialistas, procurando sempre reexaminar o modo como as fronteiras entre suas áreas se traçam na encruzilhada das experiências e dos saberes (Rancière, 2012, p.16).

A museologia, com base nesse contexto, propõe­‑se a desmontar ideias, memórias e histórias para ressituá­‑las em uma visão narrativa, polifônica e historicamente situada. Nesse sentido, as tarefas dos profissionais dos museus – educadores, conservadores, diretores etc. – podem cruzar­‑se de diversas maneiras, uma vez que se considera essa rede de visões (Puig, 2009, p.67).

A primeira perspectiva para contextualizar o educador do museu de arte é, portanto, situá­‑lo perante uma concepção de museu que, mesmo conceitualmente dividida, pode cruzar suas vertentes na prática, em diversos casos.

Os museus e a hegemonia

Considerando esse trajeto histórico da relação dos museus com seus públicos por meio do pensamento museológico, apresentamos uma perspectiva dos museus na relação com a sociedade, ampliando o contexto. Os museus como instituições representam vozes que em alguns contextos contribuem para a hegemonia e, em outros, abrem­‑se para novas perspectivas.

Tradicionalmente, os museus são considerados como celebradores da ideologia. Eles seriam espaços poucos democráticos, onde prevalece o predomínio de um grupo social, étnico, religioso ou econômico sobre outros grupos (Chagas, 2015, p.34).

Na análise do museólogo Mário Chagas o museu é um campo de disputa, e não é neutro na relação com o público. Ele apresenta um determinado discurso sobre a realidade, que é feito como em uma “arena de disputa, um espaço de conflito como campo de tradição e contradição” (Chagas, 2015, p.31). Como aponta esse autor, os museus, desde que se constituíram como instituições de memória, estão marcados pelos germes do jogo dialético. Daí a participação de todos os agentes que permeiam esse campo se torna relevante, e o papel do educador se destaca.

A partir disso consideramos, então, o contexto do objeto dos museus de artes para pensar a relação com os visitantes. Nesse aspecto, Zygmunt Bauman considera a arte atual como pós­‑moderna, tendo como uma das principais características a falta de referenciais rígidos para sustentar tanto a produção do artista quanto a leitura do espectador.

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Sem essa rigidez, a arte libera as possibilidades da vida da “tirania do consenso”. O autor afirma que a partir disso a arte pós­‑moderna procura essencialmente “abrir amplamente o portão às artes dos significados” (Bauman, 1998, p.140), consideração que pauta o contexto da apropriação do público pelas obras.

A ideia de consenso é fundamental para se pensar a hegemonia, porque por muito tempo ela pautou o pensamento ideológico. Ela era uma tentativa, baseada em preceitos racionais, de gerar consenso a partir da noção de que o que ela produz é bom para todos. Mas houve depois uma mudança, e hoje o que existe “deve ser aceito não porque seja bom, mas porque é inevitável, pois não há nenhuma alternativa” (Santos, 2007, p.55).

Contra a ideia de consenso e a favor de perspectivas novas, existe um movimento apresentado por Jacques Rancière que move as ações dos sujeitos com a intenção de “fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível” (Rancière, 2012, p.48). Ele chama esse movimento de dissenso. O dissenso é a possibilidade de apresentar novos caminhos sem cair em uma hegemonia autorreguladora.

O autor Boaventura de Sousa Santos complementa afirmando que não podemos reduzir “a heterogeneidade do mundo a uma homogeneidade que seria de novo uma totalidade que deixaria de fora muitas outras coisas” (Santos, 2007, p.39). Essa perspectiva crítica do autor é importante para articular o contexto contemporâneo da produção de conhecimento e afirmar que é necessário criar o reconhecimento dos conhecimentos no interior da pluralidade. Sua proposta para isso é realizar um procedimento de tradução.

A tradução, nesse contexto do conhecimento, é um processo intercultural que busca “traduzir saberes em outros saberes, traduzir práticas e sujeitos de uns aos outros, é buscar inteligibilidade sem ‘canibalização’, sem homogeneização” (Santos, 2007, p.39).

Essa relação expressa pela linguagem da arte também teria, segundo Ana Mae Barbosa, um potencial específico, em comparação com a linguagem científica ou discursiva, para a produção do conhecimento. Segundo essa autora, a arte como aguçadora de sentidos poderia “desenvolver a percepção e a imaginação para apreender a realidade do meio ambiente, desenvolver a capacidade crítica, permitindo analisar a realidade percebida e desenvolver a criatividade de maneira a mudar a realidade que foi analisada” (Barbosa, 2009, p.21).

Tradução e emancipação

Na intersecção com a educação formal, o museu de artes também pode influenciar a prática pedagógica de forma mais direta, durante a visita agendada. Algumas possibilidades de críticas podem ser realizadas: quando, por exemplo, o professor, em uma visita ao museu, exerce papel de opressor, ou Mestre Embrutecedor (Rancière, 2015), o educador de museu tem a possibilidade de dialogar.

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O embrutecimento se dá quando uma inteligência está subordinada a outra inteligência. Nesse sentido, o sujeito tem necessidade de um mestre que lhe apresente um caminho e obedece à vontade deste (Rancière, 2015, p.31). Diferentemente, o autor aponta que o sujeito é ignorante tanto quanto o mestre, e que ele pode aprender coisas que o mestre ignora nessa relação de ensino­‑aprendizagem – essa é a perspectiva da emancipação.

Essencialmente, ser emancipador é “fornecer, não a chave do saber, mas a consciência daquilo que pode uma inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra como igual à sua” (Rancière, 2015, p.64). Nesse contexto, a relação de ensino apresentada é horizontal e ideológica.

O educador da exposição tem, assim, um papel político dentro do espaço expositivo, que é de disputa ideológica (Honorato, 2011, p.117), pode afirmar que o museu é mais um espaço pedagógico e incentivar que os alunos se expressem.

Cayo Honorato cita também Carmen Mörsch (2007, p.661) para dizer que não tem fundamentos a expectativa da função do educador para explicar a arte, e que às vezes deve­‑se trabalhar em oposição a isso. Mörsch conclui que esse é um processo que nunca deve se completar, tendo o conhecimento do visitante e do educador conflitando e se entrecruzando, como partes de um processo. Nessa relação, a função do educador é de ser um leitor e, também, um tradutor (Honorato, 2011, p.141).

Susana Kampff Lages em sua obra Walter Benjamin: tradução e melancolia contextualiza historicamente a essencialidade da relação do tradutor com o sentimento de perda de alguma parte do significado na tradução: “se a apropriação do texto de autores anteriores é consubstancial à atividade do filósofo, do escritor, enfim, do intelectual em geral, para o tradutor, ela é a premissa concreta, a origem e a possibilidade mesma de seu trabalho. Mas, em todos os casos, essa apropriação tem seu preço: a autodepreciação do sujeito” (Lages, 2007, p.35).

Essa autora também desenvolve historicamente a proposta de tradução dos poetas concretos. Lages comenta que, neste momento, exige­‑se da tradução uma leitura poética ou então uma leitura forte. Esse é o termo utilizado pelo crítico literário norte­‑americano Harold Bloom para denominar uma leitura que se apropria de autores antecessores, a tal ponto de modificar a leitura que será feita posteriormente pelos demais.

Para Bloom, os grandes poetas são aqueles que, em seu contato, sempre conflitivo, com os antecessores na tradição, conseguem realizar uma apropriação tão radical a ponto de sua obra modificar a interpretação que posteriormente será feita dos precursores. Ou seja, o poeta forte realiza uma espécie de inversão da ordem temporal, uma inversão da causalidade, pela qual o texto atual determina a posteriori a leitura de seus antecessores na cadeia da tradição (Lages, 2007, p.91).

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Jorge Menna Barreto comenta que o termo utilizado por Harold Bloom para falar da capacidade transgressora da leitura de seus antecessores feita pelo poeta é chamada de misreading, e que foi traduzida por Arthur Nestrovski pelo termo desleitura. Há aí a ideia do erro como parte do processo de leitura que incorpora significados. Barreto descreve a leitura forte como “capaz de realizar um desvio emancipador, incorporar o erro (a distância do original) e expandir o campo de problemas em questão” (Barreto, 2012, p.128).

Nesse sentido, o desvio é uma leitura forte que se apropria do conteúdo dado, portanto, não é submissa. Esse desvio, também uma abertura, é o que acontece com a arte narrativa proposta por Walter Benjamin, que se diz evitar explicações e não ser informativa. É como se o narrador, nesse caso, não estivesse lidando com um processo da informação factual, rápida e curta. Para Benjamin, esse tipo de informação só tem valor quando ela é nova e não tem tempo de se explicar, ao passo que a narrativa “não se esgota jamais. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo ainda é capaz de desdobramentos” (Benjamin, 2012, p.220).

Esse contexto da narrativa, que vem de uma tradição oral, é relevante para se pensar nos desdobramentos da relação do diálogo na transmissão de ideias, e é na ação dialógica que Paulo Freire se baseia para construir seu pensamento pedagógico.

Entre as relações de oralidade e de tradução está o contexto individual do sujeito, que se inicia de uma leitura do mundo. Partindo de seu contexto da alfabetização, Paulo Freire aponta que aprendemos a ler o mundo, antes de ler a palavra. Para Freire, “linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre texto e contexto” (Freire, 2011, p.19). Ele completa remetendo à ideia da ação da leitura do mundo que precede a leitura da palavra como continuidade, e que desemboca em uma forma de escrever a própria história.

Esse movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo por meio da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é precedida apenas pela leitura do mundo, mas por certa forma de “escrevê­‑lo” ou de “reescrevê­‑lo”, quer dizer, de transformá­‑lo mediante nossa prática consciente (Freire, 2011, p.29).

Esse apontamento está relacionado com uma ação consciente e em comunhão entre os sujeitos que participam do mesmo mundo. Assim, os homens são mediatizados pelo mundo, atuam sobre a mesma realidade objetiva e, simultaneamente, criam a história e se fazem seres histórico­‑sociais (Freire, 2014b, p.128).

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Na ação do diálogo descrita por Paulo Freire não há “sujeito que domina pela conquista e um objeto dominado. Em lugar disto, há sujeitos que se encontram para a pronúncia do mundo, para sua transformação” (Freire, 2014b, p.227). Dessa forma, também entendemos que a condição de leitor é, antes de tudo, condição de espectador que todos os sujeitos têm em relação ao mundo.

Para Jacques Rancière, a tradução é o cerne de toda a aprendizagem. Esse é o cerne da prática emancipadora de quem ele chama “mestre ignorante”, que ignora de fato “a distância embrutecedora, a distância transformada em abismo radical que só um especialista pode ‘preencher’. A distância não é um mal por abolir, é a condição normal de toda a comunicação. Os animais humanos são animais distantes que se comunicam através da floresta de signos” (Rancière, 2012, p.15).

O ignorante aprende, para Rancière (2012, p.15), não para ocupar uma posição de intelectual, mas “para praticar melhor a arte de traduzir, de pôr suas experiências em palavras e suas palavras à prova”. O autor denomina mestre ignorante não aquele que nada sabe, mas aquele que abdica do saber da ignorância e, assim, dissocia sua qualidade de mestre de seu saber.

Rancière completa que o mestre ignorante não ensina no sentido impositivo, mas apresenta um convite para que os alunos se aventurem em uma floresta de coisas e signos para que eles digam o que viram, reflitam, comprovem e o façam comprovar. É um sentido de afirmar a igualdade das inteligências (Rancière, 2012, p.15).

Nesse caminho se entende que a obra de arte não terá um significado fixo e o educador terá como habilidade de tradutor a possibilidade de transpor as barreiras dos significados e criar interpretações com os visitantes. Rancière diz que os artistas constroem suas manifestações estéticas, porém os significados ficam expostos e se tornam incertos nesse idioma novo, fruto de uma nova aventura intelectual.

O efeito do idioma não pode ser antecipado. Ele exige espectadores que desempenhem o papel de intérpretes ativos, que elaborem sua própria tradução para apropriar­‑se da “história” e fazer dela sua própria história. Uma comunidade emancipada é uma comunidade de narradores e tradutores (Rancière, 2012, p.25).

Por fim, entendemos que um projeto de educação que vá nortear as práticas dos setores educativos dos museus de arte deve se basear em uma perspectiva de interpretação do mundo. Essa visão de mundo consiste em que o indivíduo é espectador a priori na sua relação com o mundo e também não apenas está no mundo, mas com ele (Freire, 2014a, p.137).

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Considerações finais

A análise das referências da educação aplicadas nos museus de artes, pretende abrir campos de discussão que implicam uma reflexão permanente, considerando o movimento atual de consolidação da área da educação museal.

Essencialmente, os educadores e visitantes, são entendidos em contextos iguais, como seres históricos­‑sociais que criam a história enquanto realizam ações transformadoras de uma mesma realidade objetiva (Freire, 2014b, p.128). A concepção implicada destes discursos é a de que a emancipação parte da consciência da igualdade das inteligências (Rancière, 2015, p.64), e que isso aponta para caminhos de uma sociedade de narradores e tradutores.

Portanto, entender o museu de artes como essencialmente educativo é abrir possibilidades no engajamento dos educadores e simultaneamente repensar a relação ensino­‑aprendizagem, quando deslocadas para essa realidade. Na busca por novos modelos educativos críticos, precisamos incluir o museu de artes como espaço de produção de conhecimento.

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Rede de Redes – diálogos e perspectivas das redes de educadores de museus no Brasil

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