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Museu fechado, caminhos abertos. Ações educativas durante o fechamento do Museu do Ipiranga

Resumo

Como um museu pode continuar atuando com seus públicos durante uma grande reforma? Esse tem sido o grande desafio do Museu Paulista da USP, conhecido como Museu do Ipiranga, desde seu fechamento, em agosto de 2013. Por meio do trabalho do Serviço de Atividades Educativas, o museu compreende que os públicos do museu não são somente públicos de exposições, e defende que as ações que acontecem fora de seu edifício sede sejam mantidas após sua reabertura.

Palavras­‑chave

Educação em museus; Ações educativas extramuros; Públicos de Museus; Museu Paulista; Museus fechados.

O Museu Paulista da USP, instituição centenária conhecida como Museu do Ipiranga, foi fechado em agosto de 2013, visando à segurança de visitantes e funcionários da instituição. A necessidade de uma grande intervenção no edifício que abriga o Museu, por diversas razões, já era conhecida e estava sendo planejada, mas foi precipitada pelo recebimento de um laudo de arquitetura que apontava o deslocamento do forro de algumas salas. Dessa maneira, o fechamento teve de ser realizado de maneira emergencial.

Mesmo com o fechamento do espaço expositivo da instituição – que, estima­‑se, deve permanecer até 2022, ano em que se comemorará o bicentenário da Independência do Brasil –, o Serviço de Atividades Educativas (SAE) tem realizado desde 2013 uma série de ações junto aos públicos (usuais e não usuais) do museu. O objetivo dessas ações tem sido, como apontado no Relatório Anual de Atividades do SAE de 2013, “garantir, de maneira qualificada, a realização de ações educativas, comunicativas e culturais junto aos diversos públicos do Museu Paulista durante o fechamento de seu edifício­‑sede, de modo a possibilitar o acesso à fruição, à produção e à participação social, respeitando a diversidade humana em seu aspecto mais amplo”. Tais ações podem ser divididas em algumas frentes de trabalho, articuladas às possibilidades de recursos físicos, financeiros e humanos oferecidos pela instituição.

A preocupação em estabelecer um planejamento adequado, aliado a uma infraestrutura mínima institucional para a realização dessas ações, vincula­‑se ao entendimento do SAE de que o fechamento do edifício não deve ser uma desculpa para o não cumprimento da missão do museu, qual seja, a concomitância entre a preservação e a mediação do patrimônio cultural junto à sociedade. Além disso, consideramos que a aproximação com os públicos durante período tão longo de fechamento permitirá estreitar relações e criar novas relações com a instituição até sua reabertura.

Neste artigo, procuraremos esmiuçar como a trajetória do Serviço de Atividades Educativas (SAE) desde sua implantação, em 2001, de certa maneira fundamentou a tomada de decisão pela permanência de ações junto aos públicos durante o fechamento. Além disso, será apresentada a experiência realizada durante a oficina “Ações educativas extramuros”, realizada durante o II Encontro da Rede de Educadores de Museus de São Paulo, no dia 29 de agosto de 2017, na qual se buscou aprofundar o diálogo sobre as potencialidades do trabalho junto aos públicos durante períodos de fechamento. Para melhor contextualizar nossa explanação, iniciaremos por um breve histórico da própria instituição.

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O Museu Paulista da USP, conhecido como Museu do Ipiranga, é uma das instituições museológicas mais conhecidas da cidade de São Paulo. Amplamente vinculado ao imaginário da Independência do país, o museu confunde­‑se com o edifício­‑monumento que o abriga, uma construção de proporções monumentais e uma profusão de ornamentos arquitetônicos situada na colina do bairro do Ipiranga. Não à toa, embora nunca tenha se chamado Museu do Ipiranga, é por esse nome conhecido pela quase totalidade da população paulista e brasileira – mais recentemente, aliás, a própria instituição passou a considerar o apelido como “nome fantasia” e o assumiu em seus canais de comunicação. A imponência do edifício e a ambiência criada por sua localização geográfica, acrescida dos jardins de inspiração francesa implantados ao seu redor, fizeram que ao longo do tempo inúmeras narrativas tenham sido concebidas sobre o Museu – a mais difundida dentre elas associa o edifício à moradia da família imperial. A história da instituição, entretanto, inicia­‑se com o projeto de construção de um marco comemorativo da Independência do Brasil muito tempo depois da passagem de Pedro I e sua comitiva pela região do Ipiranga – a construção do edifício, entre 1885 e 1890, iniciou­‑se 63 anos após a data convencionalmente tratada como o marco da Independência pátria, ou seja, 7 de setembro de 1822. Pedro I, portanto, nunca viu o prédio, e já havia falecido quando ele foi construído.

O Monumento foi aberto ao público como Museu somente em 1895, abrigando as coleções do até então chamado Museu do Estado. Em sua fase inicial, na gestão de Hermann von Ihering, a instituição caracterizou­‑se como um museu de história natural, assumindo função instrutiva e científica, além de marco celebrativo da história nacional. Amplamente visitado durante décadas, o Museu teve seu caráter histórico reforçado por ocasião das comemorações do centenário da Independência, em 1922, durante a gestão de Affonso Taunay. Sua narrativa expográfica foi difundida em diversos suportes ao longo do século XX e criou um discurso impactante e persistente na memória de gerações de visitantes da instituição.

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Desde a década de 1990, o Museu definiu como área de especialidade o estudo da Cultura Material por meio da criação de linhas de pesquisa, em torno das quais as curadorias desenvolvidas pelo Museu continuam a ser trabalhadas. Embora o Museu tenha sua trajetória marcada desde o início por uma forte vinculação com as instituições de educação formal da cidade de São Paulo e por décadas tenha sido o museu mais visitado da cidade, somente em 2001 – ou seja, mais de 100 anos depois de sua abertura para a população –, criou­‑se uma área especificamente voltada para o planejamento, a reflexão e a execução de ações educativas junto ao público. Dessa maneira, o Serviço de Atividades Educativas (SAE) do Museu Paulista deu início a suas atividades em novembro de 2001, com o desafio de constituir programas e ações para os públicos extremamente diversificados que o visitavam. É importante destacar que a constituição do SAE foi viabilizada com a contratação de somente uma profissional, por meio de concurso público, e somente em 2012 o quadro fixo de colaboradores teve pequeno aumento de pessoal. Ao longo dos anos, as ações foram viabilizadas principalmente por meio da atuação de alunos de graduação envolvidos em estágios de formação e contratações de profissionais para projetos pontuais.

Até agosto de 2013, o SAE vinha desenvolvendo sua curadoria educativa de forma articulada às linhas de pesquisa da instituição e aos referenciais teórico­‑metodológicos por ela adotados no tratamento de seus acervos. Suas atividades foram concebidas e estruturadas em Linhas de Ação que visavam desenvolver pesquisas e elaborar estratégias educativas que atendessem de maneira qualificada e diferenciada o público extremamente diverso do Museu. São elas: I – Pesquisa de Público; II – Participação na concepção de exposições; III – Produção de material pedagógico e de apoio à mediação; IV – Estratégias de Mediação. Esta última linha, que envolve ações que exploram as diversas dimensões da aprendizagem a partir do acervo e das pesquisas desenvolvidas no Museu, criou ao longo do tempo uma série de programas de atendimento ao público. Destacamos aqui as experiências dos programas Ludomuseu; Programa de Inclusão para Pessoas com Deficiência (Pimp); Programa para crianças em situação de risco social (Provic); e Programa de Atendimento de Jovens e Adultos (Proeja), que promoviam, antes mesmo do fechamento do edifício, estratégias de mediação extramuros, realizando visitas a instituições parceiras e programações no Parque da Independência, onde o Museu está localizado.

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A interdição do Museu para visitantes e funcionários se deu em agosto de 2013, um mês antes do período de maior visitação da instituição – o mês de setembro, em que se comemora o feriado da Independência do país e quando tradicionalmente inúmeros visitantes se dirigem ao Ipiranga em uma espécie de celebração cívica. Visando manter o compromisso e missão da instituição com seus públicos, principalmente em seu período de mais intensa visitação, o SAE discutiu e implementou junto à Direção uma estrutura física para realização de ações educativas no Parque da Independência, composta por um contêiner para guarda de materiais e duas tendas para realização de atividades. Essa estrutura, que permaneceu no Parque ao longo de alguns meses, permitiu à instituição manter­‑se ativa junto ao público em seu período de maior visibilidade, além de estreitar laços com os frequentadores do Parque da Independência, que não necessariamente conheciam as exposições em cartaz no edifício. Paralelamente, o SAE deu continuidade à participação em eventos promovidos pela Universidade de São Paulo (USP) e pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), assim como à realização da programação educativa para o calendário institucional do Museu Paulista, ações em ambiente virtual e, a partir de julho de 2015, da programação do espaço educativo do Museu (imóvel alugado próximo à entrada do Parque da Independência para receber as ações voltadas ao público), viabilizada principalmente por meio de visitas envolvendo a reserva técnica didática do SAE. A utilização de elementos e estratégias que não se restringem ao espaço da exposição museológica fundamenta­‑se na visão de que cabe aos museus históricos exercitar a leitura crítica dos indícios materiais da existência, ou seja, por meio da análise dos mais diversos aspectos da chamada cultura material, mas não somente nos ambientes expositivos. Paulatinamente, o SAE buscou estabelecer parcerias com diversas instituições da cidade, concentrando­‑se na região do entorno do Museu a partir de 2017. Além disso, buscando ampliar a discussão sobre os desafios de implantação da acessibilidade plena na reabertura do Museu, realizou­‑se em agosto e setembro de 2017 uma exposição intitulada Museu do Ipiranga para Todos, no Memorial da Inclusão – Os Caminhos da Pessoa com Deficiência. Todas essas ações fazem parte de um posicionamento que se baseia na forte convicção da equipe sobre o dever institucional de manter o acesso e a fruição dos mais diversos públicos ao patrimônio salvaguardado pelo Museu. Segundo Miranda e Novais (2015),

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O princípio da fruição coletiva do patrimônio cultural decorre diretamente do art. 215, caput, da CF, que dispõe: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” […] Em âmbito internacional, segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Resolução nº 217$1­‑$2A$1­‑$2III da Assembleia Geral da ONU em 10 de dezembro de 1948: “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar do processo científico e de seus benefícios”.

Observamos, portanto, a importância de as instituições públicas de cultura, como é o caso do Museu do Ipiranga, atuarem de acordo com as premissas nacionais e internacionais sobre os direitos culturais. A permanência das ações junto ao público, portanto, não se caracteriza como mera opção circunstancial e/ou setorial, mas como um posicionamento político e institucional de cumprimento da missão do Museu e do entendimento do acesso ao patrimônio cultural como direito humano fundamental.

Com base na experiência aqui relatada, a oficina “Ações educativas extramuros”, realizada a convite da Comissão Organizadora do II Encontro da REM/SP, discutiu experiências de ações educativas extramuros intensificadas pelo Museu desde o fechamento de seu edifício, de maneira a provocar um diálogo com os participantes presentes sobre as possibilidades de criação de novas estratégias em espaços distintos das exposições museológicas. Além disso, foram expostas as dificuldades impostas pelo fato de termos uma equipe educativa reduzida (à época, o SAE contava com apenas 3 funcionários em seu quadro funcional, além de não ter nenhum aluno bolsista); a ansiedade provocada pela eventual presença de visitantes no Parque e a necessidade de planejamento das ações – nem sempre é possível interromper todas as ações em curso para abordar grupos de visitantes espontâneos, por exemplo; e as necessárias discussões institucionais para garantia da continuidade das ações. Por tratar­‑se de uma oficina e não de uma palestra ou visita técnica, após o compartilhamento dessa experiência os participantes foram incentivados a elaborar conjuntamente propostas educativas para diferentes contextos institucionais e perfis de público presentes no entorno de museus, a partir da criação de estratégias coletivas de atuação. Os participantes reuniram­‑se em grupos de trabalho e tiveram como estímulo para o início da discussão um jogo de cartas que sorteava instituições museológicas fictícias que passariam por contextos de fechamento. As cartas ofereciam informações sobre a tipologia de museu, motivo de fechamento, equipe e recursos disponíveis, e, com base no contexto formado a partir das informações sorteadas, os grupos foram convidados a discutir possibilidades de ação a fim de manter seus museus atuantes junto aos públicos. Como já afirmado, percebemos ser possível não só criar novas estratégias junto aos públicos durante os mais diferentes contextos de fechamento, mas também identificar a grande diversidade de possibilidades aventadas pelos participantes da oficina. As discussões realizadas pelo grupo destacaram a importância da atuação das equipes de educadores na gestão das instituições, a fim de garantir o equilíbrio necessário entre as ações junto aos acervos e aos públicos, assim como a potencialidade do encontro com colegas de diferentes contextos institucionais para compartilhamento, apoio e fortalecimento da área de educação nos museus.

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Considerações finais

As ações desenvolvidas pelo Serviço de Atividades Educativas (SAE) desde o fechamento das exposições do Museu do Ipiranga à visitação pública demonstram facilmente quão multifacetada é a instituição museológica em seu potencial educativo, especialmente quando seus referenciais de pesquisa e mediação não estão apoiados exclusivamente no atendimento de público junto aos espaços expositivos.

Além disso, os acervos institucionais e as ações de curadoria desenvolvidas a partir deles se configuram em rico celeiro de possibilidades de pesquisa, educação e socialização. Além disso, no caso do Museu do Ipiranga, são inúmeros os eixos temáticos que perpassam suas coleções, o que amplifica significativamente o universo a ser mobilizado e explorado pela área de educação e a construção de novos canais de diálogo e com diferentes perfis de público. Acreditamos que essa experiência trará contribuições significativas para as discussões sobre as futuras exposições e novos referenciais educativos a serem adotados quando da reabertura do Museu.

Por fim, destacamos a importância da realização de eventos como o Encontro da Rede de Educadores de Museus de São Paulo (REM­‑SP), que possam promover o compartilhamento de experiências e a aproximação entre colegas de diferentes museus e contextos institucionais, a fim de ampliar os horizontes de atuação, fortalecer laços e fomentar ações conjuntas.

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Rede de Redes – diálogos e perspectivas das redes de educadores de museus no Brasil

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