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A mediação cultural como processo coletivo de negociação de sentidos diante de profundas transformações planetárias e da autopoiesis

Resumo

Diante da mediação cultural que ocorre no cotidiano da educação não formal em instituições culturais, é necessário traçar algumas linhas que conectam as ações, ideias, atividades e intervenções à origem comum da atuação em processos dialógicos de transformação de ideias para a geração de mudanças em contextos específicos. Nesse sentido, não podemos perder de vista as muitas intervenções, eventos e ações públicas que se desdobram em atividades mediadas de cunho artístico­‑pedagógico realizadas em instituições museais que ainda estão presentes em movimentos de educação rural e movimentos de lutas pela conquista e consolidação de direitos sociais, como por exemplo, as lutas de mulheres e homossexuais, as lutas étnico­‑raciais, a luta antimanicomial, a luta pela inclusão de pessoas com deficiência, de indígenas, dos direitos da criança e dos jovens, das pessoas em situação de imigração, pessoas sem terra e sem teto, isso só para citar os movimentos mais organizados na atualidade.

Palavras­‑chave

Mediação cultural; Educação não formal; Instituições culturais.

“[...] o princípio da comunidade foi, nos últimos duzentos anos, o mais negligenciado. E tanto assim foi que acabou por ser quase totalmente absorvido pelos princípios do Estado e do mercado.

Mas também, por isso, é o princípio menos obstruído por determinações e portanto, o mais bem colocado para instaurar uma dialética positiva com o pilar da emancipação.”

Boaventura de Sousa Santos (2000, p.75)

“O que está no centro de ‘O Mestre Ignorante’, e que tomei de Joseph Jacotot (1770-1840), é a ideia fundamental de que a igualdade não é um objetivo, mas um ponto de partida a verificar, o que quer dizer que se deve agir na pressuposição de que falamos a iguais, de que agimos com iguais.

Tentei desenvolver isso à esfera política pública, dizendo que existe democracia contanto que haja o reconhecimento de uma capacidade de pensar que pertence a todos, e que se opõe a toda capacidade de pensamento que seja especializada.”

Jacques Rancière

“Apesar de os artistas ‘políticos’ e os ‘ativistas’ serem na maior parte das vezes as mesmas pessoas, pode afirmar­‑se que, enquanto a arte ‘política’ tende a preocupar­‑se socialmente, a arte activista tende a implicar­‑se socialmente...”

Lucy Lippard (2001, p.341)

Algumas ideias desorganizadas sobre autopoiesis, crises, escolhas, narrativas que atravessam os trabalhos de mediação cultural

As salas de educadores de museus, centros culturais e instituições museais costumam estar repletas de pessoas que conversam sobre uma “vontade insustentável de mudar o mundo” por meio de seus trabalhos. Penso que parece mesmo tão insustentável como a “leveza de Milan Kundera” (Kundera, 1999), alinhando ao mesmo tempo uma sensação de angústia profunda diante das notícias acumuladas que apontam pistas de que “já não há um adulto cuidando de tudo”, “o futuro chegou e não aconteceu nenhum dos planos de liberdade­‑igualdade­‑fraternidade entre as pessoas, para além das tentativas de implementação com duração temporária” (Kayyem, 2017).

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No Brasil, se estende um gosto amargo diante da dificuldade em implementar algumas das medidas e políticas públicas para tentar minimizar os brutais processos de opressão de minorias perpetrados há séculos, diante do reconhecimento de que muito do que parecia ter sido conquistado nesse sentido pôde se colocar em risco e se perder em alguns poucos movimentos orquestrados por uma minoria que detém o poder de mobilizar os recursos. E isso impacta muito na maneira como trabalhamos e conduzimos nossas vidas no dia a dia, com nossas elaborações diante das visões de mundo cultivadas e dos valores que nos acompanham em processo de transformação e ampliação de sentidos constante.

Buscando tocar o que há por trás desse sentimento comum, que alia indignação, medo e terror paralisante diante da sensação de profunda incerteza global, gostaria de apresentar as formulações do filósofo e professor Félix Guattari em seu Três ecologias (1990):

O planeta Terra vive um período de intensas transformações técnico­‑científicas, em contrapartida das quais engendram­‑se fenômenos de desequilíbrios ecológicos que, se não forem remediados, no limite, ameaçam a vida em sua superfície.

Paralelamente a tais perturbações, os modos de vida humanos individuais e coletivos evoluem no sentido de uma progressiva deterioração. As redes de parentesco tendem a se reduzir ao mínimo, a vida doméstica vem sendo gangrenada pelo consumo da mídia, a vida conjugal e familiar se encontra frequentemente “ossificada” por uma espécie de padronização dos comportamentos, as relações de vizinhança estão geralmente reduzidas a sua mais pobre expressão...

É a relação da subjetividade com sua exterioridade – seja ela social, animal, vegetal, cósmica – que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e infantilização regressiva. A alteridade tende a perder toda a aspereza. O turismo, por exemplo, se resume quase sempre a uma viagem sem sair do lugar, no seio das mesmas redundâncias de imagens e de comportamento.

As formações políticas e as instâncias executivas parecem totalmente incapazes de apreender essa problemática no conjunto de suas implicações. Apesar de estarem começando a tomar uma consciência parcial dos perigos mais evidentes que ameaçam o meio ambiente natural de nossas sociedades, elas geralmente se contentam em abordar o campo dos danos industriais e, ainda assim, unicamente numa perspectiva tecnocrática, ao passo que só uma articulação ético­‑política – a que chamo ecosofia – entre os três registros ecológicos (o do meio ambiente, o das relações sociais e o da subjetividade humana) é que poderia esclarecer convenientemente tais questões.

O que está em questão é a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta, no contexto da aceleração das mutações técnico­‑científicas e do considerável crescimento demográfico. (p.7-8, grifo meu)

A instauração a longo prazo de imensas zonas de miséria, fome e morte parece daqui em diante fazer parte integrante do monstruoso sistema de ‘estimulação’ do Capitalismo Mundial Integrado. (p.12)

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Quando li isso pela primeira vez, ainda estávamos vivendo aquele que parece já tão distante momento de euforia econômica “Brasil: agora vai!”. A ideia de que em momentos de crise a escala de opressões cresce exponencialmente e de maneiras imprevisíveis diante da capacidade de crueldade humana levanta, em muitos de nós, uma sensação de precisar fazer algo e não saber muito bem “como” nem “o quê”. Mais e mais, o professor Paulo Freire é convocado em cada conversa e encontro, como se tivesse se tornado uma entidade que acalenta minha esperança nos momentos mais difíceis em que me pergunto: “neste trabalho em específico como educadora/mediadora, como posso contribuir para ampliar a consciência da necessidade de romper diante de contextos opressivos?”.

De forma prática, Guattari indica naquele mesmo texto que seria preciso instaurar uma ecosofia para enfrentar localmente os inúmeros desdobramentos dessa situação de implosão planetária de estruturas, e isso consiste no desenvolvimento de uma ampla compreensão de como atuar engendrando articulações ético­‑políticas entre três ecologias: o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. Com isso, seria necessário e possível nos reconstruirmos e, a partir disso, construirmos novas maneiras de viver em grupo.

Processos de criação individuais como parte de processos coletivos de construção de sentidos na mediação cultural

Para pensar essa “reconstrução” mencionada por Guattari, podemos recorrer ao biólogo, epistemólogo e professor Humberto Maturana (2001), o qual afirma que nós seres humanos estamos em processo ininterrupto de autopoiesis, ou seja, de autoconstrução a partir da formação (2001, p.80-122), e são essas autoconstruções que determinam os desdobramentos e funcionamentos dos sistemas em que estamos inseridos (2001, p.166-167). Trata­‑se de um processo individual de criação de si mesmo, que acontece a partir de escolhas e reações que se dão num processo coletivo de criação sistêmica do meio em que estamos inseridos, envolvem ação, reação, entrega e recepção:

Nós, seres humanos, sempre fazemos o que queremos, mesmo quando dizemos que somos forçados a fazer algo que não queremos. O que acontece nesse último caso é que queremos as consequências que irão se dar se fizermos o que dizemos que não queremos fazer.

Isto é assim porque nossos desejos, conscientes e inconscientes, determinam o curso de nossas vidas e o curso de nossa história humana. O que conservamos, o que desejamos conservar em nosso viver, é o que determina o que podemos e o que não podemos mudar em nossas vidas.

Ao mesmo tempo, é por isso que frequentemente não queremos refletir sobre nossos desejos. Se não vemos nossos desejos, podemos viver sem nos sentirmos responsáveis pela maior parte das consequências do que fazemos. (Maturana, 2001, p.196)

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Me chama a atenção aqui a ideia de que passamos, cientes ou não, por um processo contínuo de lidar com a necessidade de nos responsabilizarmos por nossas escolhas e por nossa autopoiesis. Um dos resultados desse processo, quando ciente, pode ser o expandir progressivo de uma consciência para os múltiplos processos de revisão de responsabilidades a cada novo entendimento de si mesmo como criatura individual e relacional indivisivelmente, dentro de um sistema e seus microssistemas. A ideia de autoria ciente de um processo de autocriação aqui não se aproxima daquele nosso tão conhecido quadro neoliberal de meritocracias ou de “ajude­‑se a si mesmo” que costuma ignorar a existência de privilégios e justificar a ausência de valores como solidariedade, inviabilizando que sejam pressupostas muitas das medidas de equiparação de oportunidades dentro de um sistema.

Ao contrário, nos remete a medidas de incerteza naturais a processos de criação, como por exemplo a criação artística, em que um conjunto de variáveis e indicadores se combinam no advento de um trabalho. A maneira como Maturana costuma usar a figura do artista (uma pessoa que vivencia processos de criação em seus ofícios) me ajuda a pensar nos processos coletivos de criação em artes, que costumam ter como propositores professores, artistas e educadores e cujas implicações, numa instância mais propositiva, depende primeiramente de uma intenção específica do indivíduo na relação com o ambiente:

Os artistas, poetas da vida cotidiana, são algumas dessas pessoas que podem estar, e frequentemente estão, conscientes do curso que a existência humana está seguindo.

Isto é particularmente evidente nos escritores de ficção científica, que revelam um futuro que surge de suas extrapolações das coerências de nosso presente relacional.

Ao mesmo tempo, os artistas podem estar, e frequentemente estão, conscientes daquilo que está faltando em nossas relações humanas atuais, tais como o amor, a honestidade, a responsabilidade social e o respeito mútuo – mas os trabalhos nos quais eles revelam ou evocam o que veem são frequentemente desprezados como sendo utopia.

Mas, em ambos os casos, não é o meio que é central para o trabalho dos artistas, e sim o que eles querem fazer.

O meio é sempre um domínio de possibilidades que podem ser usadas com maior ou menor conhecimento do que pode ser feito com elas, mas é sempre uma questão de dedicação e estética alguém conseguir ou não usá­‑las como deseja. (Maturana, 2001, p.196, grifos meus)

“Uma questão de dedicação e estética”: no sentido de processo intencional de criação de formas. Em seu livro Criatividade e processos de criação, Ostrower (1977) aborda os processos criativos em suas dimensões individual e relacional:

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Consideramos a criatividade um potencial inerente ao homem, e a realização desse potencial uma de suas necessidades.

As potencialidades e os processos criativos não se restringem, porém, à arte. Em nossa época, as artes são vistas como área privilegiada do fazer humano, onde ao indivíduo parece facultada uma liberdade de ação em amplitude emocional e intelectual inexistente nos outros campos de atividade humana. Não nos parece correta essa visão de criatividade. O criar só pode ser visto num sentido global, como um agir integrado em um viver humano. De fato, criar e viver se interligam.

A natureza criativa do homem se elabora no contexto cultural. Todo indivíduo se desenvolve em uma realidade social, em cujas necessidades e valorações culturais se moldam os próprios valores de vida. No indivíduo confrontam­‑se, por assim dizer, dois polos de uma mesma relação: a sua criatividade que representa as potencialidades de um ser único, e sua criação que será a realização dessas potencialidades já dentro do quadro de determinada cultura. Assim, uma das ideias básicas do presente livro é considerar os processos criativos na interligação dos dois níveis de existência humana: o nível individual e o nível cultural. (Ostrower, 1977, p.3, grifos meus)

para seguir apontando questões de formatividade implicadas nos processos de criação:

Outra ideia é a de que criar corresponde a um formar, um dar forma a alguma coisa.

Sejam quais forem os modos e os meios, ao se criar algo, sempre se o ordena e se o configura.

Em qualquer tipo de realização são envolvidos princípios de forma, no sentido amplo em que aqui é compreendida a forma, isto é, como uma estruturação, não restrita à imagem visual.

Partindo dessa concepção, achamos importante fundamentar a ideia dos processos criativos utilizando noções teóricas sobre a estrutura da forma.

Veremos, também, que no próprio modo de se estabelecerem certas relações mediante as quais vai surgir para nós o sentido da forma, dos limites e do equilíbrio, o fator cultural valorativo atua sobre as configurações individuais e já preestabelece certos significados. (Ostrower, 1977, p.3, grifos meus)

A pesquisa que constitui os trabalhos de educação museal realizados por educadores lida diretamente com essas noções trazidas por Ostrower, porém nesse caso não podemos esquecer a dimensão relacional dos processos de criação coletivos em que educadores estão inseridos. Para pensar sobre isso, podemos aqui nos aproximar de algumas das ideias da professora Cecilia de Almeida Salles, em seus livros Redes de criação (2008) e Processos de Criação em Grupo – Diálogos (2017), ambos frutos de pesquisas realizadas a partir de conversas, entrevistas e do acompanhamento de registros que permitem observar a maneira como ocorrem os entrelaçamentos entre a dimensão individual e a cultural (que prefiro chamar de relacional, buscando enfatizar aqui as relações que o indivíduo estabelece com a cultura no âmbito social) desse tipo de trabalho coletivo, mencionadas por Ostrower.

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Salles defende que, em um processo coletivo de criação, conjugam­‑se os processos individuais de criadores. Na tensão entre esses processos pode ter origem a obra coletiva, que terá caráter de cooperação (onde se diluem no processo e no trabalho final os papéis e importâncias individuais para o advento do resultado) ou de colaboração (em processos nos quais cada indivíduo pode manter­‑se criador individual e assim contribuir para o processo coletivo com a garantia de um combinado prévio em que seu papel individual pode ser mantido e qualificado). Além disso, ao acessar diferentes registros de diferentes criadores envolvidos em um mesmo processo de criação, Salles considerou importante reconhecer o papel das micropolíticas que constituem os campos das abordagens dos processos individuais e dos processos coletivos, onde se dão os embates e negociações, escolhas e fatos que determinam a forma dos trabalhos, além de desvalorizar a existência autoral de contribuições individuais em diferentes medidas do processo de criação coletivo. Ao debruçar­‑se sobre as narrativas de diferentes pessoas envolvidas em um mesmo processo de criação, Salles buscou tocar a dimensão experiencial do processo de criação para cada envolvido numa mesma situação, trazendo à tona a necessidade de problematizarmos a existência de “narrativas únicas” sobre acontecimentos coletivos que se desdobraram em experiências individuais (no sentido de experiência a partir da leitura de Larrosa: aquilo que se passou com uma pessoa e pôde ser sintetizado por ela sobre o que fez sentido para ela e é, de certa forma, algo que se partilha em forma de discurso mas não de sentidos). Salles me leva a pensar que nas narrativas individuais sobre processos coletivos vivenciados podemos encontrar o que foi a experiência de criação para cada envolvido, e o que cada um ofertou ao grupo e ao trabalho como contribuição. Narrativas sobrepostas sobre oferendas, presentes e trabalhos que são os frutos cultivados durante o processo, e que me fazem pensar no quanto já não é possível sustentarmos, em nossos trabalhos coletivos de mediação e de ensino em instituições museais, aquilo que vem sendo conhecido como “a narrativa única” que carrega (e por vezes esconde) os interesses, desejos e escolhas de um narrador, que conhece e escolhe contar sua versão de um acontecimento vivenciado coletivamente, colocando em evidência para aqueles que têm acesso ao seu relato aquilo que para ele foi experiência – e que corre o risco de ser tomado como o conjunto de experiência de cada um dos integrantes de um processo coletivo.

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Acredito, com base no acompanhamento direto e indireto de processos coletivos de criação em arte e educação, que quando o assunto específico de interesse são as formas de atuação dos envolvidos e o impacto das contribuições de cada pessoa, é preciso considerar a necessidade de ampliar as possibilidades de entendimento de como se podem conjugar “as participações” de todos nos processos de tomadas de decisão e realização de escolhas que determinam a forma final da narrativa sobre o processo de criação coletivo.

Afinal, é pela narrativa que será partilhado com uma comunidade maior, posteriormente à realização do trabalho, aquilo que se desdobrou como acontecimento coletivo e experiências individuais, lembrando ainda a visão de Maturana (2001, p.191-193) sobre a maneira pela qual utilizamos a narrativa para conformar aquilo que reconhecemos como a realidade de nossas vidas, a partir da síntese das experiências vivenciadas.

No caso dos trabalhos criados a partir de processos coletivos, a narrativa constituirá uma espécie de registro possível, que passa a ser inserida como obra em exposições, festivais, aulas, seminários, congressos e outros lugares de circulação desse tipo de práticas que reúne um tipo específico de público que escolhe se conectar com as questões e visões de mundo mencionadas anteriormente e por isso se interessa em conhecer esse tipo de experiência. A meu ver, há nesses encontros entre pessoas que mostram esse interesse a possibilidade de experimentar em alguma medida um tipo diferente de apreciação estética a partir da narrativa de processos – e que envolve, assim, novos valores de apreciação estética, para além dos conhecidos e estabelecidos a partir da forma de um objeto, imagem, imagem em movimento, performance ou de uma formulação conceitual, para as quais conhecemos um longo percurso crítico entranhado por inúmeros estudiosos que se dedicaram e ainda se dedicam a desenvolver reflexões importantes que acabam por tornar­‑se pontos de partida para possíveis aproximações teóricas que podem ser consideradas em situações de apreciação e pesquisa.

A configuração dessas narrativas normalmente chama a minha atenção para a ideia de que a organização hierárquica de papéis em torno de um propositor e o consenso como finalidade nos processos de tomada de decisão dos projetos não deve ser uma regra e nem mesmo precisa ser a única equação possível para realizar o trabalho de cunho relacional, social e dialógico implicado na mediação cultural.

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Mediação cultural como processo de criação coletivo de narrativas de experiência no âmbito museal

Diante da mediação cultural que acontece no âmbito de trabalhos realizados por nós, educadores atuantes no campo da educação não formal em instituições culturais, penso que se faz necessário traçarmos algumas linhas que conectam as ações, ideias, atividades e intervenções à origem comum de nossa atuação em processos dialógicos de transformação de ideias para a geração de mudanças em contextos específicos.

Nesse sentido, não podemos perder de vista as muitas intervenções, eventos e ações públicas que se desdobram em atividades mediadas de cunho artístico­‑pedagógico realizadas em instituições museais que também estiveram e ainda estão presentes em movimentos de educação rural e movimentos de lutas pela conquista e consolidação de direitos sociais, como por exemplo, as lutas de mulheres e homossexuais (fortalecidas na atualidade pelo cruzamento de teorias de gênero com o legado do movimento feminista), as lutas étnico­‑raciais, a luta antimanicomial, a luta pela inclusão de pessoas com deficiência, de indígenas, dos direitos da criança e dos jovens, das pessoas em situação de imigração, pessoas sem terra e sem teto, isso só para citar os movimentos mais organizados na atualidade.

Muitos desses mediadores culturais, que como aves migratórias atravessam as estruturas de diversas instituições museais realizando trabalhos temporários de mediação cultural, são também artistas, filósofos, historiadores, biólogos, geógrafos, arquitetos, psicólogos, fotógrafos ou cientistas sociais que, em muitos casos, dedicam­‑se em instituições educacionais à docência ou, em instituições não governamentais, ao trabalho de educação social.

Seus fazeres envolvem agendas e estruturas de visibilidade a partir das quais se operam a mobilização e o agenciamento de pessoas e recursos para ativação de lugares de um território que pode se tornar “espaço público” a partir da atuação do mediador cultural, em especial daqueles que buscam investir na construção de narrativas individuais e coletivas por meio de processos de negociação e disputas de lugares de fala e de escuta.

Para tanto, os mediadores culturais podem explorar uma série de “tecnologias da mediação cultural”, que são as práticas relacionais de convívio com pessoas de um território, e se desdobram na forma de processos de trocas que podem se dar por meio de procedimentos de escuta e diálogo. Neles, costuma­‑se empregar ferramentas e metodologias da educação e da arte para a equiparação de oportunidades de construção narrativa a partir de repertórios mobilizados, num jogo em que se busca, ainda que em dissenso, por novas formulações de sentido diante de um mundo em que reconhecemos processos um tanto caóticos de transformação.

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E é aí mesmo, na ideia de que um acontecimento social desse tipo de convivência em um grupo “pode mudar o mundo”, que lembro o posicionamento radical do artista e professor Joseph Beuys com sua plástica social, afirmando que ser professor era “sua maior obra de arte” (Beuys, 1977; Shapiro, 1977). Suas ideias sobre fazer arte para transformar pensamentos e com esse ato promover mudanças reais em contextos específicos por meio da participação social direta, e com isso melhorar a vida no planeta, tinham por base a criatividade e os processos de criação, coletivos de preferência, como uma das formas de “transformar o mundo”.

A aproximação ao Joseph Beuys mediador cultural nesta conversa nos leva mais perto daquele desejo­‑necessidade que atravessa há muito tempo as conversas das quais participamos diariamente. Em salas de educadores de museus e instituições culturais, em salas de aula, salas de professores e exposições, mas também em festas, visitas a pessoas conhecidas e desconhecidas que atuam nos encontros (e desencontros) da arte com a educação, tomamos contato com uma concentração de necessidades, vontades e intenções para mudar contextos e romper com opressões, a partir de “outros jeitos de fazer” acontecer. “Acontecer o quê?” Uma aula, um encontro, uma oficina, um programa, um projeto, uma performance, uma exposição, um texto, um mutirão… “Por quê?” Para pensarmos juntos sobre o que queremos mudar, por que queremos mudar, como podemos mudar – as formas de vida que já não nos parecem adequadas.

Essa inclinação quase magnética que atravessa as falas de tantos desses profissionais pode, entretanto, correr o risco de ser sustentada por muito tempo sem qualquer implicação prática, e nem sempre carrega noções claras de seus próprios contornos. Estamos falando de trabalhos que de fato podem ser alterados coletivamente em sua forma a partir dos acontecimentos que se desenrolam durante sua realização – e isso pode gerar tanto situações interessantes do ponto de vista das formas de participação e criação quanto situações problemáticas do ponto de vista ético, artístico e social.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que há uma série de contribuições interessantes em curso para as áreas de arte e educação, ao analisarem um conjunto de trabalhos que se dão a partir do estabelecimento de relações sociais e que seguem atravessados por práticas dialógicas e pelas complexidades advindas não só do momento em que o trabalho se realiza (e é registrado para uso posterior em inúmeros casos) mas também do momento em que se sintetizam as suas narrativas, que se tornam oficiais ao integrar publicações e exposições na forma de narrativas únicas – e com isso podem esconder uma série de contradições e riscos que moram na distância entre o discurso e a prática – e também na falta de clareza acerca das implicações estruturais dos processos de criação coletivos nos quais muitos artistas e educadores estão inseridos.

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É preciso, também, vislumbrar as ideias e entendimentos dos profissionais da mediação cultural diante dos mecanismos de sua atuação e área de ação. Para pensar em quais estratégias têm sido exploradas nesse sentido, tomo aqui como exemplo uma postagem do educador e artista Bruno Makia, que convocou por rede social a comunidade de educadores a se colocarem diante de uma inquietação sempre presente na área da educação e mediação museal: “qual a estrutura mínima para o acontecimento da educação e da arte?” (Figura 1).

Figura 1 – postagem de Bruno Makia.

Falar sobre estrutura evoca nas pessoas aquilo que é absolutamente necessário para o desenvolvimento de um trabalho. A maior parte das respostas apontou para questões importantes, porém de ordem subjetiva, como por exemplo: “o olhar”, “o encontro”, “o professor e o aluno”, “pontos de vista”, “a escuta e o diálogo” e por aí afora, que sem dúvida são fundamentais para a realização de um trabalho coletivo de mediação cultural, estão ainda distantes da garantia de condições para o exercício de um ofício. Quando leio a palavra “estrutura” na formulação de Makia, penso em recursos básicos necessários, como por exemplo: condições para o exercício do ofício (garantias legais para sua formação e exercício da profissão) e acesso a recursos (passando pela remuneração que garanta a manutenção da vida econômica e também o acesso a outros recursos que viabilizem a realização de suas propostas). Se esse mínimo estiver garantido, acredito que seja possível pensar, de saída, em uma equiparação de oportunidades de trabalho e de negociação nas relações intra e extrainstitucionais, tendo como resultado a possibilidade de que cada profissional tenha, de base, recursos e garantias para dedicar seus esforços e sua potência a realizar o trabalho ao qual se propõe sem tantas descontinuidades e insegurança, como é costume observarmos – e até mesmo vivenciarmos.

Nesse sentido, é preciso reconhecer ainda a tensão institucional em que os departamentos ou áreas de educação costumam estar implicados, comumente citada por inúmeros pesquisadores como as professoras educadoras­‑pesquisadoras Ana Mae Barbosa, Carmen Morsch e Caro Howell. Este comentou em texto um episódio do início dos anos 1990, em que um captador de recursos que trabalhava para viabilizar as ações educativas de um importante museu nacional inglês chamou de “hamsters empoeirados” os educadores desse mesmo museu em uma confraternização da instituição, interpretando as motivações que podem acompanhar o comentário como uma etiqueta que indica entendimentos de pelo menos duas ordens: “de vidas não percebidas, longamente vividas sob as escadas; de criaturas fofas do final do espectro das pestes, que provavelmente não causarão grande mal, mesmo se se ponham a morder; toleradas, mas colegas apenas pelo nome” (Howell in Sharmacharja, 2009, p.142).

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Para Morsch, os conflitos entre o que uma instituição espera de um mediador cultural e a prática desse agente costumam ocorrer quando os caminhos trilhados são o da desconstrução e da transformação de discursos específicos pelas implicações do uso desses tipos de discurso nas formas de participação de pessoas em processos de criação coletivos, considerando que o trabalho do mediador cultural (seja ele educador de museu, estagiário em exposições, supervisor de equipes de mediação cultural, coordenador ou gestor de serviço educativo) é desenvolvido quando essa pessoa consegue ocupar o território em que atua tornando­‑o um espaço público de fato, a partir das práticas desenvolvidas em grupo e dos repertórios em situação de troca dos envolvidos em processos de leituras, traduções e interpretações de mundo que constituem a experiência individual e o repertório de todos os participantes, ideia esta sintetizada no diagrama seguinte (Figura 2).

Figura 2 – Diagrama – Fluxo de retroalimentação nos processos artístico­‑pedagógicos.

Esse diagrama tenta apontar a maneira como eu percebo um fluxo de retroalimentação nos processos artístico­‑pedagógicos em que venho me envolvendo nesses últimos 20 anos de prática. Longe de ter a intenção de alcançar ou instaurar uma fórmula, trata­‑se de um ponto de encontro e partida para estabelecer conversas com meus pares e chegarmos juntos a outros tipos de formulações e conjugações a partir dos elementos nele presentes.

Ele encerra este texto como um convite à reflexão diante de suas práticas de mediação cultural. Como é o território em que você atua? Em que momento o seu trabalho transforma esse território em espaço público? Como seus repertórios – e os dos outros – se desdobram nas práticas das quais você participa? Que visões de mundo estão em tensão quando você propõe esse giro? Que tipo de transformação­‑câmbio­‑mudança sua atuação pode implicar? Que trocas, dádivas, presentes ou entregas circulam quando você atua?

Escutemos.
Narremos.
Conversemos respostas possíveis.
No campo que é a mediação cultural.

Referências

BEUYS, Joseph. An Interview with Joseph Beuys. Artforum, v.16, 1977.

GUATTARI, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990.

KAYYEM, Juliette. Where are the adults in the room. [Registro em áudio]. Disponível em: https://news.wgbh.org/2017/08/16/politics-government/where-are-adults-room; acesso em: 14 fev. 2018.

KUNDERA, Milan. A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

LIPPARD, Lucy R. Trojan Horses: Activist Art and Power. [1984]. In: WALLIS, B. (Ed.) Art After Modernism: Rethinking Representation. New York: New Museum of Contemporary Art, 2001.

MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001.

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SALLES, Cecilia de Almeida. Processos de Criação em Grupo – Diálogos. São Paulo: Estação das Letras, 2017.

. Redes de criação: a construção da obra de arte. Vinhedo, SP: Horizonte, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.

SHARMACHARJA, S. (Ed.) A manual for the 21st century art institution. London: Koenig Books; Whitechapel Gallery, 2009.

SHAPIRO, David. A View of Kassel. Artforum, v.16, n.1, 1977.

Capa

Rede de Redes – diálogos e perspectivas das redes de educadores de museus no Brasil

Sumário Ficha Técnica