8

Rotas da Memória entrePontos cariocas, um museu difuso na poética do Sul

Resumo

O artigo discute um processo de escrita criativa co­‑elabor­‑ativa junto a Pontos de Cultura e memória entendidos como Museus do Território, no Rio de Janeiro, como parte de uma experiência a/r/tográfica vivenciada em mergulhos poéticos andarilhos como mediação cultural e ativação dos territórios. Trata­‑se de ação concebida como museu difuso, nômade e temporário que, em diálogo com o conceito de geopoética dos sentidos, questiona outros patrimônios possíveis e opera como dispositivo de memória. Propõe, também, uma leitura sobre o patrimoniável como ato de reeducação estética alinhada à poética de uma pedagogia do Sul.

Palavras­‑chave

Memória; Lugar; Patrimoniável; Geopoética dos sentidos; Poética do Sul.

Introdução

Neste artigo pretendo traçar uma reflexão sobre um processo de escrita criativa co­‑elabor­‑ativa a partir da vivência junto a quatro museus do território, ações de mediação cultural que perpassam diversos lugares do subúrbio da Cidade do Rio de Janeiro. A experiência foi vivenciada em intercâmbios e andarilhagens poéticas promovidos pelo Pontão de Cultura e Educação Tear (em diante Pontão) ao longo de 2017. O Pontão é uma iniciativa do Instituto de Arte Tear que acontece desde 2015. Inserido no contexto da Lei Cultura Viva, visa a sensibilização estética para o fortalecimento de processos criativos e produtivos dos agentes da rede de Pontos de Cultura a partir da implementação de tecnologia social dialógica de produção e partilha de conhecimentos acerca das práticas em Arte/Educação. A construção criativa teve como base o encontro (com o lugar, com o espaço habitado e seus percursos, consigo e com o outro) e por isso se fundamentou no que chamamos de mergulhos poéticos, experiências sensíveis da estese em interação vivenciada em diversos lugares e também em plataformas digitais, entendidos todos como espaços de memória, de formação, trocas, intercâmbio, sistematização e produção.

As ações do Pontão cimentam a experiência Rotas da Memória: entrePontos cariocas, uma proposta de museu difuso, transitório e nômade a partir da mobilização de organizações locais que reinventam o conceito de museu. O projeto envolveu os Pontos de Cultura e memória Museu do Samba, Museu da Maré, Ecomuseu de Sepetiba e o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos – Museu Memorial. Aproximando­‑nos do conceito de Geopoética dos Sentidos (Amaral, 2015a), processo performativo atento às mudanças no espaço urbano e sua influência na subjetividade e, assim, da noção de patrimônio, buscamos desenvolver um modo de interação que, a partir do que chamamos de mergulhos poéticos andarilhos, pudesse desdobrar em processo de escrita processual criativa e co­‑elabor­‑ativa.

9

Arte, mediação, espaço e memória

De início nossa ação/indagação transita na dimensão da mediação cultural e sua relação com os processos de significação e ensino­‑aprendizagem. De modo geral, girou em torno da expressão criadora e articuladora de memórias coletivas e de sentidos de pertencimento. A arte/educação como um ato de mediação cultural e social, como apontado por Ana Mae Barbosa (Barbosa; Coutinho, 2009). Ela nos lembra do processo em que, ao longo dos séculos, foi sendo construído o conceito de educação como mediação e do professor/educador como mediador do ensino/aprendizagem, até a consolidação desta ideia por Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si mediatizados pelo mundo” (Freire, 2011). Mediação na produção de conhecimento sobre o mundo e sobre o outro, como parte do processo de ressignificação da realidade. Nesse contexto, Ana Mae Barbosa aponta: “A arte tem enorme importância na mediação entre os seres humanos e o mundo, apontando um papel de destaque para a arte/educação: ser a mediação entre a arte e o público” (Barbosa, 2009).

Trata­‑se da arte na sua dimensão estética e existencial, entendida na sua dimensão social ressignificadora da realidade a partir da articulação da memória e da cultura, no movimento criativo dos seus agentes.

Pontos de Cultura são, para nós, aqueles que carregam no seu fazer o acúmulo de uma cultura viva, uma cultura com memória, que relê a cidade a cada ato, a cada feito. Mediar essa memória e os processos de produção estética nos/dos territórios a partir da noção de lugar é um desafio que entendemos urgente. Perceber esse processo de mediação como um ato arte/educativo solidário e co­‑elabor­‑ativo foi a nossa aposta e é, ao mesmo tempo, nosso aprendizado e nossa contribuição. A teia sutil em que é tecida nossa produção estética continua sendo um mistério que só a vivência sensível consegue desvendar. Todavia, esse complexo entrelaçar intersubjetivo é certamente atravessado pelo espaço que habitamos e pelas pegadas que nele deixamos. Somos no lugar e, como nos lembra Milton Santos (1997), cada lugar é ao seu modo o mundo; nele vivenciamos e recriamos sentidos de pertença; é a partir do lugar que podemos perceber o mundo e sua totalidade, tornando­‑nos conscientes da nossa experiência sensível; e é nesse emaranhado de trajetórias que confluem e desaguam que criamos.

O lugar é o mais concreto, verificável dos conceitos espaciais que utilizamos – espaço é mais abstrato, e território, categoria geopolítica por excelência, define, por subjetividades hegemônicas e impostas, seus desígnios aos subespaços (regiões, lugares). Na acepção de Milton Santos (1996, 1997, 2012) o lugar, constituído por indissociáveis sistemas de objetos e de ações, apresenta­‑se como a fração vivenciável da totalidade mundo: “o mundo – que visto como um todo é nosso estranho – tem sua existência revelada pelo lugar – nosso próximo. No lugar conhecemos o mundo pelo que ele já é, mas, também, pelo que ainda não é. Desta forma, o futuro, mais que o passado, torna­‑se nossa âncora” (Santos, 1996).

10

O lugar é, assim, o espaço da possibilidade, da oportunidade e principalmente, como instância única da produção de sentidos a partir da experiência vivenciada – pois produzida em torno do espaço que nos é comum – de comunicação, cuja ordem é da horizontalidade, em oposição à informação, que é da ordem da verticalidade. A produção de sentidos sobre o mundo a partir do lugar, como espaço de subjetividades com o qual possuímos vínculos de afeto, ou então político­‑afetivos, é intrínseca a essa concepção (ver Barría Mancilla, 2014, p.105). Ela dialoga com a abordagem da fenomenologia da percepção de Merleau­‑Ponty (1999, 2004[1948]),  que parte da concepção de mundo­‑percebido, em que a relação sujeito­‑mundo se baseia nos processos constitutivos da percepção subjetiva de um mundo que é, assim, um campo fenomenológico constante.

Para Yi­‑Fu Tuan “o lugar é um mundo de significado organizado” (1983, p.198). Tuan aprofunda uma concepção do lugar cujo elemento fundante está constituído pela experiência vivida (1980, 1983). Nesse sentido desenvolve, entre outros, os conceitos de topofilia e topofobia, dando centralidade às relações de afeto com o espaço habitado. Para nós, uma concepção não objetivável do espaço é fundamental, de modo a fugir a concepções essencialistas da identidade. Daí a centralidade do pensamento de Milton Santos e de Doreen Massey. Para Massey não é possível entender o espaço como algo já dado, objetivamente apreensível, pois “é o produto de relações­‑entre, relações que são práticas materiais necessariamente embutidas que precisam ser efetivadas, ele está sempre num processo de devir, está sempre sendo feito – nunca está finalizado, nunca se encontra fechado” (Massey, 2004, p.8).

Como em Paulo Freire (2011), quando afirma que “o mundo não é, o mundo está sendo”, a noção de experiência vivida se torna elemento central da nossa reflexão­‑ação. Para compreendermos a relação íntima da experiência vivida com o lugar, a memória e a concepção de identidade de modo não essencialista, é preciso perceber que as análises totalizantes e as narrativas descritivas produzidas pelo pensamento moderno/colonial, no qual fomos formados, têm se mostrado incapazes de produzir respostas concretas aos processos locais e suas lutas, dissociando­‑se das práticas e da construção dialógica com os saberes que delas se desprendem. Como afirmávamos ao refletir sobre o conceito de trajetória à procura dos sentidos de uma poética do Sul,

É na experiência coletiva, local e regional/cultural, em camadas que se superpõem sem se excluir [comunidade, lugar no mundo do trabalho, bairro, cidade, região definida por determinado imaginário cultural, continente], que se articulam a memória e os sentidos que definem o que venha a ser a classe social, a cultura e a luta, isto é, o imaginário, a noção de pertencimento e identidade que nos torna parte de um ir sendo coletivo – comunidade comunicativa – como parte de uma trajetória comum [...] em movimento e relação constantes. (Barría Mancilla, 2014, p.199)

11

Assumimos, assim, uma concepção do espaço como produto de inter­‑relações (relações entre) e por isso mesmo, como a esfera da possibilidade da existência da multiplicidade, a esfera na qual distintas trajetórias coexistem (Massey, 2004) e se interpolam. Nas palavras de Doreen Massey, o espaço é “a esfera da possibilidade da existência de mais de uma voz. Sem espaço não há multiplicidade; sem multiplicidade não há espaço. Se o espaço é indiscutivelmente produto de inter­‑relações, então isso deve implicar a existência da pluralidade. Multiplicidade e espaço são co­‑constitutivos”.

As sociedades atuais são complexas, multiformes e atravessadas por tensas relações interculturais que as alargam de sentidos. Porém, o inegável processo de globalização do capital traz consigo a globalização da sua subjetividade, que se torna assim hegemônica. Ana Clara Torres Ribeiro (2005) descreve essa subjetividade hegemônica do capital financeiro como sustentada na crença de que a rapidez, o consumo personalizado, o acesso a objetos sofisticados, o usufruto de corpos hiperproduzidos e o conforto das grandes redes hoteleiras sejam metas potencialmente partilhadas por todos os povos e culturas, e nos alerta para o fato de ser justamente essa crença a que vem agredindo o tecido de relações societárias e seus acervos culturais de longa e lenta decantação – sentido comunitário, solidariedade e partilha, identidade cultural e seus imaginários, redes parentais e locais etc. Ativar os territórios a partir das experiências vivenciadas nos lugares em processos de mediação cultural e produção estética (mediação cultural como arte/educação e arte como mediação da memória) torna­‑se assim uma ação urgente de fortalecimento da nossa diversidade biocultural, isto é, da vida.

Como se sabe, a expressão estética reflete, queiramos ou não, a cultura, o cotidiano e as relações sociais, econômicas, políticas e bioculturais de um povo ou, de outro modo, as suas relações com os processos de produção/reconfiguração e organização do espaço habitado. Dessa forma, a indagação estética em interação com os diversos usos do espaço, suas relações afetivas e as práticas estruturadas e estruturantes dos agentes sociais no lugar constitui uma espécie de “buraco de minhoca” que permite acessar, na mesma ação performativa, passado, presente e futuro no mesmo movimento em que o espaço urbano é ressignificado por essa ação. Entender o mundo como museu, que articule passado e futuro (Amaral, 2015, 2015a; Martín­‑Barbero, 1997, 2004), demanda descobrir os dispositivos de ativação da memória e do olhar a partir da experiência vivenciada, do espaço habitado.

Artérias e seus Fluxos: cartografias em movimento e a ideia das rotas

12

Na concepção do projeto do Pontão, em 2014, foi preciso conceituar o espaço, para logo cartografá­‑lo em­‑relação, em uma pesquisa solidária que captasse as produções subjetivas em/com/sobre o espaço habitado, dando origem ao conceito de rotas. Os mapeamentos oficiais não davam conta; a ideia de território não oferecia a substância necessária para estabelecer essa relação íntima e propriamente afetiva dos sujeitos com a sua espaço­‑temporalidade. As chamadas Áreas de Planejamento (AP), com que o governo municipal organiza o espaço urbano para definir políticas públicas, para além da sua eficácia ou não, operam na lógica da gestão e do controle. Trata­‑se de uma lógica que não produz identidade nem pertencimento. Faltava incluir em nossa percepção o uso do espaço urbano, ou seja, o movimento, os fluxos, a circulação, a mobilidade urbana, ou sua limitação, e não apenas o estar. Essa relação íntima dos sujeitos (indivíduos e coletivos) com o uso do espaço urbano, que cria topofilias e subjetividades não hegemônicas, mas essenciais à produção de sentidos de pertencimento, assim como também de heterotopiasurbanas, outros presentes, base para os inéditos viáveis.

Percebemos que a malha de vias de fluxo e trânsito intenso de pessoas em nossa cidade é composta por, pelo menos, três grandes rotas que denominamos Brasil, Valongo e Rebouças (ver Figura 1). Essas “rotas” são também definidoras de identidades e estéticas urbanas também fluidas, que a concepção – geopolítica e militar – de “territórios”, com suas fronteiras estanques e claramente delimitadas, não é capaz de comportar. Trata­‑se de identidades e estéticas urbanas em movimento, invisíveis aos olhos do que não flui. Ao longo dessas vias, inúmeras iniciativas culturais proliferaram e frutificaram. Assim, compreendemos cada rota como complexos definidos pelos usos e percursos cotidianos de faixas importantes da população em sua relação com a cidade. Enquanto a rota Brasil envolve toda uma dinâmica a partir das artérias da Avenida Brasil e região da Leopoldina, perpassando a maior parte do subúrbio carioca, de Sepetiba aos grandes complexos de favelas do Alemão e da Maré, as rotas Valongo e Rebouças traçam trajetórias ligadas ao Centro da cidade, o cais do porto e a baía de Guanabara (a Valongo), e a outra (a Rebouças), às rotas de circulação pelas zonas Sul e Norte.

Figura 1: Mapa Rede Carioca de Pontos de Cultura por Rotas

Rotas da memória: entrePontos cariocas

A configuração da proposta de Museu difuso, nômade e temporário como interface de memória deu­‑se a partir da convergência da pesquisa­‑ação/solidária do Pontão com as contribuições do campo da museologia social, da a/r/tografia e das reflexões em torno das cartografias geopoéticas e do patrimoniável, problematizadas com a supervisão da pesquisadora associada profa. dra. Lilian Amaral, com elementos da cibercultura e das experiências trazidas pelos próprios Pontos de memória/museus do território. Começamos identificando e aprofundando o conhecimento do trabalho de Pontos de Cultura como centros de memória e ações museais no território, buscando traçar as interações de mediação cultural que desenvolvem com o espaço urbano. Para tal, realizamos em novembro de 2016 o Colóquio “Cartografias Artísticas, Territórios Poéticos”, no auditório do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, com a curadoria da professora Lilian Amaral.

13

A partir do colóquio, uma série de ações e encontros foi disparada, dando origem ao GT do patrimoniávelcomposto pelos quatro Pontos mais o Pontão Tear. Buscando indagar semelhanças e singularidades dos coletivos entre si e com o espaço urbano, cada Ponto do GT mediou um encontro por meio de andarilhagens pelos seus lugares na cidade. Entendendo memória, cultura e identidade como um entrelaço complexo que articula as espaço­‑temporalidades humanas, e que podemos acessar a partir do lugar, a estratégia traçada buscou inter­‑relacionar, pela interpolação de diversas tecnologias da memória, o que Lévy (1993) chamou de “tempos do espírito”: a oralidade primária, a escrita e a informática. Buscamos criar, assim, dispositivos de criação, captura, reflexão e aprofundamento da experiência. Para isso, de forma transversal e integrada aos processos de mediação no território, as ações de produção co­‑elabor­‑ativa envolveram duas plataformas digitais na web e a publicação de um livro digital.

Estes se tornam necessários como engrenagens de um dispositivo de memória complexo cujas funcionalidades se complementam: uma cumpre de forma imediata o papel de memória em construção com­‑par­‑trilhada que acompanhou o processo a/r/tográfico, e que chamamos de Fórum de escrita criativa co­‑elabor­‑ativa; outra, de mapeamento, produção e partilha de conteúdos de forma colaborativa na web, o Astrolábioe a publicação em formato digital aberto, e­‑book, contendo relatos e reflexões de todos os atores envolvidos nos processos coautorais, com o objetivo de partilha e a decorrente geração de novos conhecimentos.

Entramos nos territórios por outras dimensões do lugar que passam pelo afeto, pelo uso, pelo inventário, instigados a indagar: “podem as práticas artísticas e de mediação construir lugar/território?”. O encontro com o outro, no lugar, como espaços estranhados pelo olhar alheio que ali performa e comunga de ritual poético de co­‑criação; passos, sons, olhares, palavras, mudanças, memórias, releituras: a possibilidade de uma escrita co­‑elabor­‑ativa a partir da vivência no/do lugar/mundo/museu; uma escrita que articula os três tempos do espírito de modo a colher, com o “excedente de visão estética” que o outro tem de mim (Bakhtin, 2003), a partilha da experiência estética. Um dispositivo de memória que acha na alteridade do espaço praticado o nexo vital de uma estética do nós­‑eu descolonizado.

As andarilhagens dispararam um processo de escrita criativa co­‑elabor­‑ativa proposta ao GT. Além da vivência de mediação apresentada por cada Ponto de memória/museu do território, as andarilhagens foram performadas por meio de vivências poéticas propostas pela nossa equipe de arte/educadores. A plataforma na web recebe as contribuições oriundas das vivências em cada andarilhagem, completando a noção de museu difuso. Um espaço de captura da experiência, do afeto, das impressões e das interações, mais do que da análise posterior e distanciada pelos processos de escrita linear e racional. Assim, o Fórum de escrita co­‑elabor­‑ativa: memória, território e o patrimoniável configura­‑se como espaço de pesquisa, criação, compartilhamento e reflexão acerca de percepções e de memória de vivências “andarilhantes”, a/r/tografadas coletivamente nos diversos territórios, reais e imaginários. Nas palavras de Lilian Amaral, “Espaço de invenção, questionamento e intercâmbio de processos de mediação cultural e artística que opera no campo da educação patrimonial, como forma de construção de narrativas em territórios em transformação [...] Desta forma, como construção processual, um devir coletivo e flexível, sua configuração seja a do patrimoniável”.

14

​​O Fórum foi se constituindo, desse modo, em produto­‑processo do trabalho desenvolvido, independente do processo de escrita final recolhido no e­‑book Rotas da Memória, entrePontos cariocas.

O uso dessa tecnologia da inteligência (Lévy) como elo da interface de memória permitiu o acompanhamento e a intervenção em tempo real por parte de todos os envolvidos nos trabalhos. Ao articular experiência/lugar/tempo/memória/partilha/co­‑criação, a plataforma operou como um “esticador” do tempo de reflexão/sensibilização/partilha dado nos encontros vivenciados. Desse modo, o conteúdo possui um valor estético processual, ligado intimamente à vivência, motivo pelo qual não se fez uma revisão dos textos para seu enquadramento em normas técnicas ou acadêmicas de publicação, de modo a não alterar seu caráter de testemunho criativo processual. O Fórum retrata, como um diário de bordo dialógico, uma experiência singular que se dá no âmbito subjetivo e se amplia e complementa no/com o coletivo.

A proposta de escrita co­‑elabor­‑ativa dialoga intimamente com o campo da a/r/tografia, uma abordagem metodológica baseada na prática artística e na escrita colaborativa, cuja referência é Rita Irwin (2009). O termo nos fala de uma escrita coautoral cuja narrativa é tecida pelo a/r/tógrafo e pela comunidade, no lugar. Do mesmo modo, como já apontado, essa ação a/r/tográfica se deu em diálogo com a Geopoética dos Sentidos (Amaral, 2015, 2015a) baseada na construção co­‑elabor­‑ativa que se dá na prática do lugar – pressupondo uma performatividade entre corpo e cidade, o que implica deslocamentos como procedimentos.

Entre seus objetivos destacamos: investigar as transformações urbanas por meio de sistema de cartografia artística/cultural; mapear e analisar, para entender as dinâmicas do lugar; ​​visualizar, para interpretar as articulações diversas que acontecem no território; ​​projetar, para traçar novas dinâmicas produtivas; colaborar, para potencializar e multiplicar as capacidades criativas.

Por sua vez, das vivências andarilhas surgiram objetos­‑conceito que, como metáfora, abriram novas percepções sobre a totalidade­‑mundo: a tarrafa (Sepetiba), o surdo (Mangueira), a pedra (Cais do Valongo), o Tempo (Maré). Esses objetos­‑conceito operaram como urdiduras simbólicas que foram sendo tecidas no Fórum de escrita criativa e co­‑elabor­‑ativa, de modo entrelaçado às cartografias artísticas e mergulhos poéticos que ativaram os territórios da memória.

Como parte do processo reflexivo/criativo sobre a experiência, a equipe do Pontão produziu o curta­‑documentário Rotas da Memória entrePontos Cariocas,que buscou uma síntese audiovisual das rotas. O documentário foi lançado em julho de 2017 no Colóquio homônimo, que teve lugar no Centro Municipal de Artes (CMA) Hélio Oiticica, e apresentado em agosto no Encontro da REM­‑SP, no CPF­‑Sesc, na cidade São Paulo.

15

Também foram produzidos quatro pequenos vídeos de um minuto cada, com extratos das falas dos representantes dos Pontos de memória. Essas peças foram disseminadas pelas redes sociais para mobilizar os coletivos para o Colóquio.

O Colóquio realizado no CMA Hélio Oiticica possibilitou uma interessante aproximação entre as experiências vivenciadas no Rotas da Memória e as realizadas pela Rede do Patrimoniável, apresentada e representada pela pesquisadora Lilian Amaral, notadamente a partir do vídeo desenvolvido pelos pesquisadores Liliana Fracasso e Francisco Cabanzo, organizadores da Rede de Observatórios de lo Patrimoniable em contexto colombiano.

16

Na ocasião, montou­‑se uma exposição/instalação a partir das práticas artísticas realizadas nos quatro lugares­‑pontos de cultura e memória, com curadoria coletiva liderada pelas artistas plásticas e pesquisadoras Ana Alvarenga e Ana Lobo, ambas da equipe do Pontão – centrada em objetos­‑conceito e imagética produzidos durante as visitas e andarilhagens entre os Pontos de Cultura e memória nos territórios.

Instalação com base em objetos­‑conceito desenvolvidos ao longo do projeto - Centro Cultural Helio Oiticia, Rio de Janeiro, Julho, 2017

Reflexões inconclusivas: o patrimoniável como poética do Sul

Toda inscrição na memória do humano é releitura que projeta no tecido social sua narrativa. Para além da tecnologia da inteligência da sua escrita, toda escrita é releitura. Nas sociedades complexas, cidades tensamente interculturais são o contexto de narrativas hegemônicas que obliteram inúmeras memórias. A racionalidade moderna ocidental constitui a urdidura epistêmica que ordena o sistema­‑mundo, conferindo a ele um sentido único, monocultural, hegemônico. Na nossa sociedade, grafocêntrica e eurocentrada, a história escrita assume certa empatia com aqueles que dominam o código. O tempo da escrita se impõe assim, nos territórios, à oralidade, com superioridade legitimada pela própria condição histórico­‑social. Todavia, a nossa sociedade não é apenas uma, ocidental por antonomásia, como a pretendem suas elites, e não se narra apenas com palavras.

Enquanto o sujeito hegemônico do Ocidente tem a sua história – e, logo, a sua leitura das histórias subalternas – contada pelas instituições, pelo direito e mesmo pela ciência (Spivak, 2010), registrada nos textos de História (com maiúscula), os subalternos e oprimidos carregam a sua memória/[herança patrimoniável] inscrita no corpo, no gesto, nos atos, nas ações, na paisagem (nos silêncios) e também na palavra – cantada, contada e mesmo escrita (Barría Mancilla, 2017).

O lugar de enunciação, a questão da linguagem, assim como a possibilidade de reeducarmos o olhar para ler não só palavras, mas também paisagens e corpos, constituem elementos essenciais no desvelamento do outro, do nós­‑outros.

Descolonizar a escrita e o olhar para enxergar além do que até hoje ela nos conta; articular narrativas outras, em exercício contínuo de desobediência epistêmica (Mignolo, 2003). Buscarmos estratégias, abordagens metodológicas, astúcias que operem como dispositivos de resgate da experiência. Um pensamento fronteiriço como parte de uma geopolítica da sensibilidade e do conhecimento (Mignolo, 2011). Fórum de escrita co­‑elabor­‑ativa, ações/práticas artísticas e vídeo/memória­‑museu difuso; nossa proposta de ação criativa/indagatória é um movimento de ativação dos territórios, de intervenções performativas que excitem a derme do lugar habitado; a/r/tografar territórios artísticos sensíveis, como cartografias poéticas; é um vir a ser de novas/ancestrais memórias coletivas; (nos) afetar e assim achar os nexos do Nós­‑Eu de que nos fala Norbert Elias. Sulear nossas pesquisas. Arte como mediação cultural e social, como ato de re­‑encantamento do espaço. Mediação cultural como ato performativo de arte e de educação.

17

Mergulhos poéticos no lugar nos incitam a uma reeducação visual da memória coletiva abrindo a experiência sensível a um devir­‑patrimônio: o patrimoniável. Se o patrimônio é a memória socialmente legitimada, o patrimoniável é a memória em relação, que emerge como a possibilidade de democratização/descolonização desse processo de legitimação social da arte e da cultura, da memória e da própria herança coletiva em contexto intercultural. Pensar desde o lugar a totalidade­‑mundo, desde o encontro, em movimento de escrita criativa co­‑elabor­‑ativa nos aproxima dos sentidos de uma “poética do Sul”. A Experiência das Rotas da memória deixa resíduos que convergem para o início de uma sistematização do trabalho de mediação cultural como arte/educação entendido como uma pedagogia do patrimoniável, que por ser uma pedagogia da memória ainda não legitimada é, se lida em chave descolonial (ou se preferirmos, do Sul global), um “ato educativo contínuo que sabe ler paisagem e corpos e não apenas os códigos da língua oficial/colonial”, alinhado à poética de uma pedagogia do Sul (Barría Mancilla, 2014).

Referências

AMARAL, Lilian. Cartografias artísticas e territórios poéticos [recurso eletrônico]. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 2015. Disponível em: http://www.memorial.org.br/wp-content/uploads/2017/01/Cartografias-Art%C3%ADsticas-e-Territ%C3%B3rios-Po%C3%A9ticos.pdf; acesso pela última vez em: 20 dez. 2017.

. R.U.A. – Geopoética de los sentidos. In: CONGRESO INTERNACIONAL DE INVESTIGACIÓN EM ARTES VISUALES (ANIAV), 2., 2015a. (Comunicação virtual). Disponível em: http://dx.doi.org/10.4995/ANIAV.2015.1053; acesso em: 22 dez. 2017.

BARBOSA, Ana Mae. Mediação cultural é social. In: BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane G. (Org.) Arte/educação como mediação cultural e social. São Paulo: Ed. Unesp, 2009. p.13-22.

BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane G. (Org.) Arte/educação como mediação cultural e social. São Paulo: Ed. Unesp, 2009.

BARRÍA MANCILLA, Claudio. Memória, imaginário descolonial e aura da arte e da cultura popular na nossa América. In: CARMO CRUZ, Valter do (Org.) Geografia e giro descolonial. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2017. p.345-367.

. Pela poética de uma pedagogia do Sul, diálogos e reflexões em torno de uma filosofia da educação descolonial. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal Fluminense (UFF). Niterói, 2014.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

DIAS, Belidson; IRWIN, Rita L. (Org.) Pesquisa Educacional Baseada em Arte, A/r/tografia. Santa Maria: Ed. UFSM, 2013.

FOUCAULT, Michel. De espaços outros. Estud. av., São Paulo, v.27, n.79, p.113-122, 2013. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-40142013000300008; acesso em: 7 jan. 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 50.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Anthropos, 2000). 2006. Disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf.

18

LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência, o futuro do pensamento. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993.

MARTÍN­‑BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações, comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997.

. Ofício de cartógrafo. São Paulo: Loyola, 2004.

MERLEAU­‑PONTY, Maurice. Conversas [1948]. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MIGNOLO, Walter. Os esplendores e as misérias da ‘ciência’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluriversalidade epistémica. In: SANTOS, Boaventura de S. (Org.) Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ‘ciências’ revistado. Lisboa: Afrontamento, 2003. p.631-671.

. Geopolítica de la sensibilidad y del conocimiento, Sobre (de)colonialidad, pensamiento fronterizo y desobediencia epistémica. Transversal: Unsettling Knowledges, Viena: eipcp (European Institute for Progressive Cultural Policies), 01-12. 2011. Disponível em: http://eipcp.net/transversal/0112/mignolo/es; acesso em: 20 jan. 2018.

QUIJANO, Anibal. Colonialidad del poder y clasificación social. Journal of World Systems Research, v.6, n.2, p.342-386, 2000.

RAFFESTIN, Claude. Por uma geografia do poder. São Paulo: Ática, 1993.

SANTOS, Boaventura de S.; MENESES, Maria P. (Org.) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SANTOS, Milton. O lugar: encontrando o Futuro. Revista de Urbanismo e Arquitetura, Salvador: UFBA, v.4, n.1, p.6-39, 1996. Disponível em: https://www.portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/view/3113; acesso pela última vez em: 20 dez. 2017.

. A natureza do espaço: técnica e tempo, espaço e emoção. 2.ed. São Paulo: Hucitec, 1997.

. Da totalidade do lugar. São Paulo: Edusp, 2012.

SPIVAK, Gayatri C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010.

SPRINGGAY, Stephanie; IRWIN, Rita L.; KIND, Silvia W. A/r/tography as Living Inquiry Through Art and Text. Qualitative Inquiry, v.11, n.6, p.897-912, 2005.

TORRES RIBEIRO, Ana Clara. Outros territórios, outros mapas. OSAL – Observatorio Social de América Latina, año 6, n.16, jun. 2005. Buenos Aires: Clacso, 2005.

TUAN, Yi­‑Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo: Difel, 1983.

. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel, 1980.

Capa

Rede de Redes – diálogos e perspectivas das redes de educadores de museus no Brasil

Sumário Ficha Técnica